Corpos (in)submissos:
formas de sujeitamento e resistência no mundo contemporâneo e suas repercussões na clínica de psicologia
LUIZA RIOS RICCI VOLPATO
Psicóloga, mestre e doutora em História pela Universidade de São Paulo, Membro e CBT da Sociedade Brasileira de Análise Bioenergética – SOBAB- e Membro do International Institut for Bioenergetic Analysis IIBA. luizavolpato@hotmail.com
Resumo
No movimento constante do viver, o sujeito contemporâneo, como o de qualquer outra época, aceita e resiste a parâmetros sociais existentes e dessa forma participa do movimento da História. Hoje, os padrões salutares e estéticos se impõem ao conjunto da sociedade, cobrando dos indivíduos constante vigilância sobre si e sobre as pessoas sob suas responsabilidade, gerando novas sensações de opressão e culpa. Numa sociedade competitiva, valores como a beleza física, a saúde e a juventude se tornaram tanto um bem a ser buscado a qualquer custo como um pré-requisito para se atingir outros objetivos como sucesso profissional e afetivo.
O presente trabalho busca analisar as dores e angústias geradas por essa faceta da opressão social que atinge indivíduos que se colocam fora do padrão estético valorizado, privilegiando o enfoque da situação do sujeito obeso ou portador de sobrepeso.
O objetivo central do estudo é considerar as possibilidades de interferência e abordagem possíveis através da clínica em psicologia.
I
O século passado foi um período de grandes avanços científicos e tecnológicos, entre os quais cabe destacar o surgimento de métodos realmente eficazes de controle da natalidade, possibilitando às mulheres uma nova inserção tanto no mundo do trabalho como das relações afetivas. A disseminação dos métodos contraceptivos promoveu alteração tanto nas relações de trabalho, como nas relações de gênero produzindo mudanças consideráveis nas sociedades ocidentais. Parte integrante desse fluxo de mudanças está o movimento de Maio de 68 (que já vai ficando distante passados 40 anos de sua ocorrência). Durante várias semanas, em diversos países do mundo ocidental os jovens saíram às ruas pedindo ampliação de seus direitos políticos, regras sociais menos hipócritas e especialmente uma sexualidade mais livre. Entoando refrões como “É proibido proibir”, “faça amor, não faça guerra”, “sejamos realistas, peçamos o impossível” influenciados pela leitura dos textos de Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, Herbert Marcuse entre outros, os jovens reivindicavam o fim dos parâmetros rígidos que regulavam as vidas em sociedade.
Olhando para trás, é possível afirmar que se tratava de ações contra a sociedade disciplinar, movimentos políticos e de biopolítica, que obtiveram êxito em vários aspectos.
Essa busca de ampliação da liberdade sexual é parte integrante do conjunto de movimentos que ocorreram na década de 1960 e que lutavam pelos direitos das minorias e expandiram seu raio de influência em várias direções. A liberação dos costumes se expressou nas Artes, na Literatura, no Direito e no cotidiano das pessoas com repercussão muito nítida no mundo da moda. As cinturitas, anáguas, combinações foram abandonadas, as saias longas e rodadas tornaram-se obsoletas e Mary Quant inaugura uma nova era inventando a mini-saia.
No Brasil, Leila Diniz chocava tradições exibindo sua barriga de grávida indo à praia de biquíni, expondo o que até então era tratado com “recato e pudor”, o corpo da mulher grávida. E a nossa música popular ampliou o seu horizonte, cantando a alegria e “a menina que vem e que passa num doce balanço a caminho do mar”. A praia assumiu um espaço até então desconhecido tanto na vida, como no imaginário das pessoas. Cada vez mais se legitimava a exposição dos corpos e a liberdade sexual, processo que tomou um novo fôlego com fim da censura prévia e a conseqüente dinamização das diversas formas de expressão e divulgação artística, editorial, estética, entre outros.
Corpos expostos no cotidiano das ruas, nos filmes e revistas, nas vitrines de lojas e shopping centers. Uma exibição constante, atraindo olhares e consequentemente avaliações e críticas. A forma de apresentação e a aparência das pessoas nos espaços públicos já era aspecto merecedor de crítica desde há muito. Em seu interessante trabalho sobre a história da beleza, Georges Vigarello (2006) analisa como ao passar dos tempos o rosto foi perdendo importância como ponto central de fixação dos olhares . Ao final do século XX, o corpo, mais do que o rosto se tornou foco de atenção, gerando novos padrões de beleza e de exigência sobre a apresentação e o comportamento das pessoas. Essa exigência, embora vigore para todos, exerce impacto maior sobre às mulheres, uma vez, que apesar de todos os avanços obtidos na relação entre gêneros nas últimas décadas, ainda se cobra das mulheres que sejam belas enquanto que dos homens a exigência é de que sejam fortes e/ou bem sucedidos.
Nos últimos anos o padrão estético do mundo ocidental tem feito da esbeltez seu item privilegiado: mulher bonita significa prioritariamente mulher magra. Mas apenas este aspecto não basta, é preciso que a mulher apresente também um corpo trabalhado em exercícios físicos, massagens e outros recursos de tal forma que se mostre o mais homogêneo possível, sem rugas, sem marcas, sem cicatrizes.
Essas cobranças têm se aprofundado a ponto de se tornar uma nova forma de opressão dos corpos e conseqüentemente das pessoas. A alimentação desde há muito é permeada por um conteúdo moral, não se pode esquecer que a gula, ou seja, a ingestão sem limites e por prazer é considerada na doutrina cristã um dos pecados capitais, como também a preguiça, a indolência e, o sobre peso e, em sua última forma, a obesidade são considerados pelo senso comum como resultado da gula e da preguiça. Sem levar em conta as diferenças individuais, a constituição física ou a carga genética de cada indivíduo, o que se espera é que as pessoas sejam magras e “malhadas”, ou seja, que sua musculatura seja enrijecida pelo exercício físico constante.
O predomínio do corpo esbelto, saudável e jovem sobre as demais formas físicas se constitui em uma das facetas possíveis de expressão do bio-poder e, presentemente, beleza é vista como fator essencial na busca de ascensão social, projeto que chega a se concretizar para alguns, o que reforça a idéia de que este canal de estaria aberto a todos.
Mas caminhando no sentido contrário à exigência do corpo esbelto e “trabalhado” o mundo contemporâneo tem hoje como um de seus valores a busca incessante do prazer e a rejeição do esforço.
A sociedade disciplinar, que teve seu apogeu entre o século XIX e primeira metade do século XX, enaltecia a dedicação e a poupança como as formas legítimas de se obter sucesso e bem estar. A ociosidade era considerada um mal. Atualmente, avanços tecnológicos buscam reduzir o desgaste na execução das tarefas, possibilitando o surgimento do “tempo livre” categoria inexistente até bem pouco tempo ( Masi, 2000). E, o “tempo livre” se constitui em um hiato a ser usado em busca e em nome do prazer. Tanto assim, que um dos setores que mais têm crescido na economia contemporânea é o setor do entretenimento. Entre as diversas formas de busca de prazer a gastronomia tem, como desde há muito sempre teve, um espaço privilegiado. Além das inúmeras alternativas de estabelecimentos que oferecem as mais diversas formas de alimentos e alimentação, os supermercados expõem incontáveis produtos com suas embalagens reluzentes e atrativas. É difícil se pensar uma forma de congraçamento ou confraternização na qual não esteja incluído o consumo de comida ou bebida.
Prazer e consumo estão entrelaçados como se um não fosse possível sem o outro: consumo de produtos, bens, estilos de vida…
Não é de se estranhar, portanto, que as taxas de sobrepeso venham crescendo em níveis assustadores nos países industrializados, especialmente no hemisfério ocidental. Esta reflexão, no entanto, não legitima o ganho de peso: desde os discursos médicos até a opinião do senso comum repudiam o sobrepeso, o qual se tornou um importante foco de discriminação das pessoas . Vivendo em um mundo que oferece condições para o ganho de peso, como a imensa oferta de guloseimas e a diminuição do esforço físico e do exercício na vida cotidiana, os indivíduos, em especial as mulheres são cobrados para que sejam magros e o sobrepeso e a obesidade, como já foi anteriormente mencionado são vistos como resultado da ação individual de seus portadores.
Assim, além do desconforto de se sentir fora do padrão de beleza e de comportamento socialmente exigidos a pessoa gorda se sente também culpada por ser ela mesma a responsável pelo sofrimento.
Novos padrões. Novas exigências e consequentemente, novas dores e novas culpas.
II
Essas questões se apresentam nos consultórios de psicologia de diversas formas: o excesso de consumo, a flexibilização exagerada das normas de comportamento, a permissividade têm produzido novas formas do adoecer: a violência, a drogadição nas suas diversas formas, o consumo compulsivo, a depressão, a síndrome do pânico e as doenças mais ligadas diretamente ao corpo, como a vigorexia (musculação em excesso), as somatizações, a anorexia nervosa, a bulimia e a obesidade. Mesmo as questões ligadas diretamente ao peso corporal se mostram através de várias facetas. O controle ponderal se tornou uma obsessão generalizada entre as mulheres, qualquer oscilação é causa de mudança de humor. E o peso corporal tem sido usado emocionalmente de diversas formas, tanto como álibi, como mecanismo de auto-punição, como instrumento para punir aos pais, como proteção contra dores que parecem maiores do que a auto-rejeição e a rejeição do outro.
São várias as formas que os sujeitos lançam mão para expressar suas dores e angústias, formas essas que muitas vezes se consolidam em um adoecer .
Os relatos apresentados a seguir são bem distintos entre si, cada um apresenta a história de uma jovem inserida em sua realidade social, enfrentando e se submetendo às condições de vida que lhe são dadas. Tanto em uma história como em outra o sobrepeso ou a sua ameaça mereceram destaque especial. A linha de trabalho desenvolvida, no entanto, não seguiu a rota definida pelo sintoma, ou seja, a questão central do trabalho não foi o sobrepeso, a preocupação maior era compreender a pessoa em sofrimento, buscando-se entender as diversas formas que usava para expressar a sua dor.
Diana foi minha paciente por dois anos, sua queixa era de que nada dava certo em sua vida. Alta, morena, cabelos longos e fartos, grandes olhos castanhos essa jovem de 29 anos me pareceu não só bonita como de uma presença bastante forte – dificilmente passaria despercebida em um ambiente.
Quando lhe perguntei o que não dava certo em sua vida, respondeu que apesar da idade não se considerava satisfeita com sua vida profissional e se via sem sorte nas relações afetivas, pois gostaria de a esta altura da vida já ter uma relação estável e melhor ainda gostaria de já ter uma família.
A pergunta seguinte: e por que nada dava certo em sua vida?
A resposta: tinha a auto-estima abalada por ter sido obesa no passado.
Pedi que ela esclarecesse melhor: havia sido realmente obesa, em que época da vida e por quanto tempo, uma vez que naquele momento em que eu a estava conhecendo ela era magra.
Ela retrucou minha fala dizendo que se considerava gorda. E contou que havia convivido com o sobrepeso entre os 10 e os 12 anos, período em que havia sido alvo de zombaria do irmão mais velho e submetida a tratamentos de perda de peso.
A experiência do sobrepeso teria deixado na jovem uma distorção da imagem corporal? A relação do sujeito com sua aparência física é um fenômeno subjetivo e relacionado com as questões afetivas em especial na relação com sua mãe (Dolto, 1992). O olhar de Diana para si mesma colocava seu peso em situação de destaque, como elemento central na constituição de sua auto-imagem e, portanto como ponto nodal em sua auto-estima comprometida.
Indo além no relato de sua história Diana informou ser a caçula de uma fratria de três irmãos, um homem e uma mulher de idade bem próxima e ela cinco anos mais nova do que a irmã. Quando do início do processo terapêutico ambos já eram casados, com suas vidas profissionais estruturadas. A jovem, por sua vez, trabalhava na empresa da família e segundo sua própria avaliação sua remuneração era compatível com seu cargo, mas seu desempenho era aquém de suas atribuições e de seus ganhos. O favorecimento, embora confortável, contribuía para o comprometimento de sua auto-estima.
Em relação a sua vida afetiva, Diana sentia-se ainda mais abalada: tivera namorados desde a adolescência, mas não se considerava amada por nenhum deles e não sentia admiração pelos rapazes que havia namorado. Ao iniciamos o processo terapêutico, a jovem ainda estava se refazendo do rompimento de um noivado. A dor maior não vinha da separação, mas de ter se submetido ao namoro e ao noivado com um rapaz com sérios problemas: sofria de alcoolismo, não tinha uma profissão definida e lidava de forma que ela não aprovava com dinheiro. Diana havia conseguido romper a relação, mas sentia sua auto-estima abalada por este relacionamento e estava vivendo uma fase de envolvimentos fortuitos que ela própria reprovava.
Com o desenvolvimento do processo terapêutico, Diana pôde analisar sua condição no universo familiar, caçula, mimada pelos pais, de um lado era poupada por eles em relação às responsabilidades próprias a um adulto e de outro era cobrada a estar sempre disponível às exigências dos genitores que já se sentiam envelhecidos: deveria estar sempre pronta para ouvi-los e acompanha-los a médicos, compras, etc. A paciente percebia as responsabilidades que lhe cabiam neste pacto, mas como não enxergava os seus ganhos, sentia-se sempre explorada e enraivecida.
A experiência do sobrepeso na infância e o fato de ter sido tanto alvo de zombaria como de restrições, deixara u’a marca de dor, sofrimento e rejeição. Na vida adulta, quando o sobrepeso já havia sido eliminado, Diana continuava presa nessa vivência, como se esta fosse a única fonte de sofrimento. Ao assumir posturas mais adultas e compromissadas em relação à sua vida e ao seu trabalho, pôde usufruir dos ganhos dessa nova condição. Também pôde refletir sobre a grande dificuldade em abrir mão da condição de caçula mimada, ganho que a mantinha presa em sua postura infantilizada.
Em um momento mais avançado do processo terapêutico, Diana foi estimulada a falar sobre sua avaliação sobre seu peso. Pode então assumir que não se considerava gorda, mas tinha muito medo de voltar a engordar. Pode falar também sobre seu desejo de ter um corpo que pudesse estar acima das críticas, ou seja, um corpo perfeito. Colocado de outra forma, Diana tinha medo de passar novamente pela dor de ser rejeitada e que a causa de rejeição fosse sua aparência. Tratava-se de um medo real, que podia ser compreendido e acolhido. O desejo de ter um corpo perfeito, por sua vez, pode ser visto como uma idealização, um projeto inalcançável, tanto por ela, como por qualquer outra jovem, pois a perfeição pertence ao mundo das idealizações.
Diana, durante um bom tempo, havia usado o sobrepeso como um álibi: toda sua infelicidade era oriunda do fato de se sentir gorda. Essa crença a impedia de olhar de forma mais crítica para si mesma e para o seu entorno e a mantinha fixa tanto na dor, como no insucesso.
Cláudia foi minha paciente por mais de cinco anos: procurou-me por indicação da psicoterapeuta de seu irmão mais velho, que havia iniciado tratamento contra o uso de maconha. Após uma sessão com a família do rapaz a psicóloga orientou Cláudia a buscar um tratamento psicoterápico individual.
Quando nos conhecemos ela tinha 20 anos – seu rosto aparentava bem menos, mas sua forma de vestir e em função de seu sobrepeso, seu corpo aparentava bem mais. Pele clara, olhos e cabelos castanhos, nariz e boca muito bem delineados, dentes perfeitos, mas toda essa beleza e o viço da juventude eram escondidos pelos cabelos mantidos longos e sem corte definido, o sobrepeso e a roupa: Cláudia se vestia com calças compridas bem largas e túnicas. Muito tímida e assustada era assídua e pontual, mas tinha muita dificuldade em falar. Lentamente sua história foi sendo apresentada: era a filha do meio de uma fratria de três irmãos, um rapaz mais velho e uma irmã mais nova, morava na capital do estado com seus irmãos, todos os três universitários, os pais viviam no interior. Sentia-se emocionalmente distante dos pais: sua mãe muito exigente fora agressiva com os filhos na infância, Cláudia presenciara muitas vezes o irmão ser surrado, o que fazia com que ela obedecesse sempre, temendo receber o mesmo castigo. No início do ensino médio, foi enviada, a contragosto, para a casa da avó materna para estudar em uma cidade maior e, mais tarde, também a contragosto veio morar em Cuiabá, para fazer companhia para a irmã mais nova que havia escolhido residir nesta cidade. Fazia um curso universitário que não gostava, mas até então não sabia qual profissão seguir. O estudo havia sido fator de sofrimento desde a infância, sempre ameaçada de surra e outros castigos caso não se saísse bem, Cláudia entrava em pânico por ocasião dos exames escolares.
O relacionamento com os irmãos também era difícil: desde cedo fora comparada com desvantagem com a irmã, magra, bem sucedida nos estudos e realizando o curso universitário do desejo dos pais. A paciente era capaz de entender que a irmã não era responsável pela desqualificação que sofria por parte dos pais, mas a comparação constante entre as duas dificultava que ela se aproximasse de sua mana: afirmava mesmo não sentir carinho por ela. O irmão de Cláudia era o típico rebelde, na ausência dos pais levava a vida que queria, consumia maconha, levava amigos para fumar em seu apartamento, apesar da queixa das irmãs e abusava de poder em relação às duas. Diversas vezes Cláudia foi agredida fisicamente pelo irmão, não se queixava aos pais com medo das ameaças do rapaz e quando o fazia a mãe defendia o filho.
Assustada, tolhida, Cláudia tinha sua auto-estima bastante abalada e apresentava os comprometimentos típicos de mulheres que sofrem violência doméstica. Seu sobrepeso, que já atingia o nível da obesidade tinha a função de protegê-la.
Algumas autoras estudando a anorexia nervosa (Lawrence, 1991; Robell, 1997) afirmam que as jovens anoréxicas sentem seu corpo como seu único espaço e preservam para si o domínio sobre o mesmo: apenas elas decidem se alimentar ou não. O comportamento de Cláudia era semelhante ao das jovens anoréxicas se manter gorda era uma forma de enfrentamento dos pais que desejavam que ela emagrecesse, como era também um espaço de vingança. Sempre que a mãe vinha visitar os filhos, impunha seus padrões de exigência, alterando as rotinas de todos e criticando a limpeza e organização do apartamento. Suas visitas eram aguardadas com medo e rancor por Cláudia, que sabia que seu comportamento e sua dieta seriam vasculhados e criticados. Quando a mãe ia embora, Cláudia se “vingava” às vezes ingeria de uma só vez um pote de dois litros de sorvete.
A paciente apresentava também outros comportamentos típicos de pacientes com anorexia nervosa (idem), mantinha-se sempre isolada, não conversava com os irmãos e não tinha amigos, sua confidente era a empregada doméstica da casa. Esta acabou deixando o emprego em função de desavença com o rapaz, sempre ríspido e autoritário. Sua ausência aprofundou o isolamento de Cláudia.
A jovem não mantinha relacionamentos fora de casa, na faculdade tinha apenas o contato necessário com colegas e professores. Não tinha namorado e raramente saia de casa para se distrair, muitas vezes recusava os convites da irmã apenas para contrariá-la.
Cláudia explicava seu isolamento afirmando que desejava se mudar para um grande centro ou para o exterior assim que se tornasse independente, se não tivesse laços que a prendesse seria mais fácil ir embora. Essa justificativa se apoiava no fato de que sua mãe havia abandonado um curso superior para se casar. Olhando por este prisma, a obesidade, o cabelo longo e as roupas largas serviam como uma capa escondendo seu corpo e protegendo-a de sua própria sexualidade .
Apesar de sua timidez, era a paciente que tomava conta das finanças e organização do apartamento. De um lado, era a presença de mais um sintoma típico da anorexia nervosa: é comum a paciente anoréxica se preocupar muito com comida, tendo prazer em providenciá-la e oferecer aos demais. Era Cláudia que fazia as compras de supermercado e gerenciava a empregada doméstica da casa, determinando especialmente a rotina alimentar de seus moradores. De outro sua atuação doméstica foi usada no processo terapêutico sendo um dos aspectos tomados como referência no trabalho de recuperação de sua auto-estima.
Para Lawrence (1991) ocupar o tempo com comida é uma forma usada pela paciente anoréxica para preencher seu tempo vazio. Este comportamento também é próprio do paciente obeso, a diferença é que a jovem anoréxica faz comida, coleciona receitas culinárias, visita supermercados, mas não come nada. A comida preenche seu tempo e ao mesmo tempo é usada para testar o seu auto-controle. Já o paciente obeso também usa o tema da alimentação para preencher seu tempo vazio, a diferença é a de que o obeso ingere a comida que faz ou o que vê e compra nos supermercados. E enquanto a jovem anoréxica se sente forte e vitoriosa por manter o autocontrole, o paciente obeso se sente abatido por ter mais uma vez sucumbido.
O processo terapêutico desenvolvido com Cláudia foi longo e difícil, lentamente sua auto-estima foi sendo reforçada e ela pôde olhar para dentro de si enxergando suas possibilidades, aptidões e habilidades.
Refletindo sobre suas preferências e aptidões Cláudia foi expressando um interesse pelo mundo da moda. Mas quando afirmou que seu sonho era trabalhar nessa área, foi sumariamente desqualificada pelos pais: como uma gorda poderia trabalhar no mundo da moda?!
Estimulada a ir em busca da realização de seu sonho, Cláudia ingressou no curso de tecnólogo de moda, sem, contudo, abandonar o antigo curso superior. Até então a jovem se considerava intelectualmente limitada, pois sempre estava se esforçando muito para ser aprovada; os ótimos resultados que passou a obter no curso de moda, levaram-na a rever estes conceitos e contribuíram para que mais autoconfiante também se saísse bem no outro curso universitário.
Não foi fácil para a jovem enfrentar os abusos do irmão e colocar limites no rapaz. Ao ser mais uma vez agredida ligou para os pais e ameaçou dar queixa à polícia. A mãe, mais uma vez tentou apaziguar a situação, mas diante da posição firme de Cláudia o pai se posicionou, fazendo com que o rapaz deixasse o apartamento das irmãs. Foi um momento de vitória e de muita dor: apesar das agressões Cláudia se sentia ligada ao irmão, testemunha das agressões que ele havia sofrido na infância havia construído um sentimento de solidariedade para com o mesmo. Foi capaz de conversar sobre essas questões com o irmão e apesar do grande atrito que havia ocorrido entre os dois, quando o rapaz saiu de casa se separam sem rompimento.
Em um mesmo semestre Cláudia finalizou os dois cursos, a conclusão do bacharelado fazia com que se sentisse mais segura – havia vencido todas as dificuldades e se formado com boas notas em um curso no qual não tinha interesse. A finalização do curso de moda foi sentida como uma grande realização. No momento da apresentação de seu trabalho de final de curso – criação, confecção e apresentação de uma coleção – Cláudia estava radiante, empunhando o microfone com grande desenvoltura explanou sobre seu trabalho com segurança e alegria. Seguindo uma dieta de reeducação alimentar já havia perdido 15 quilos, mudara o corte do cabelo e começava a se vestir de forma mais jovial. Num momento mais avançado do processo terapêutico, Cláudia havia compreendido que se manter gorda e se vestindo com roupas largas e escuras para não ceder à vontade da mãe era apenas uma forma negativa de se atar a esta mesma vontade. Fora possível, a partir de então, estimular a paciente a refletir sobre o seu desejo em relação ao seu corpo e a sua aparência e a responsabilizar-se por eles.
Uma jovem bonita e determinada surgia, deixando para trás a menina assustada, que durante um bom tempo usara a obesidade, o cabelo e as roupas para se esconder. A gordura também havia servido de anteparo, diante de tantas agressões. Assumindo a responsabilidade por sua própria vida, não precisava mais fazer de seu corpo seu único espaço de poder e resistência.
III
Durante séculos, no mundo ocidental, a exposição dos corpos havia sido uma questão de ordem moral-religiosa, o que ainda acontece em várias sociedades contemporâneas. Nas últimas décadas, diversos fatores contribuíram para que esses padrões fossem alterados. Hoje, no mundo industrializado, onde há o predomínio do consumo típico das sociedades capitalistas, existe uma grande valorização da aparência das pessoas. A beleza e a juventude se tornaram padrões preponderantes de avaliação, contribuindo para a consolidação de uma nova ordem, esta também discriminatória, também opressora, uma ordem estético-moral. Permanece o preceito moral na medida em que a partir de seus parâmetros, a nova ordem avalia, julga, condena e discrimina pessoas e comportamentos. Esta nova ordem faz parte do mundo contemporâneo e os sujeitos resistem e se submetem aos padrões impostos.
O presente texto buscou apresentar, através de experiências concretas novas facetas do sofrer humano. Histórias de jovens enfrentando e se submetendo a padrões opressores de comportamento. O trabalho terapêutico se desenvolveu no sentido de acolher a dor de se sentir fora do modelo desejado, mas indo além, seguiu no intuito de estimular as pacientes a refletirem sobre si mesmas se responsabilizando por suas vidas e por suas escolhas. Aceitar as diferenças entre as pessoas e respeitar a diversidade própria de um mundo tão heterogêneo é um dos caminhos possíveis na busca da liberdade.
Sobre o corpo humano como uma produção social ver, entre outros, Marcel Maus, 1974;Jorge Crespo, 1990; Joana.V. Novaes, 2006.
O biopoder foi estudado e conceituado por Michel Foucault, 1988.
Ver por exemplo Fabíola M. P. Gaspar, 2003.
Sobre o assunto ver Joyce Mc Dougall , 1996.
Nome fictício.
Nome fictício.
Sobre as funções que a obesidade pode assumir ver Maria Salete A.Loli (2000).
Bibliografia
CRESPO, Jorge – A história do corpo, Lisboa, Difel, 1990
DOLTO, François – A imagem inconsciente do corpo, trad., São Paulo, Perspectiva, 1992.
FOUCAULT, Michel – História da sexualidade I: a vontade de saber, trad, 10 ed, Rio de Janeiro, Graal, 1988.
GASPAR, Fabíola Mansur P. Gaspar – Obesidade e trabalho: histórias de preconceito e reconhecimento vividas por trabalhadores obesos, São Paulo, Vetor, 2003.
LAWRENCE, Marilyn – A experiência anoréxica, trad., São Paulo Summus Editorial, 1991.
LOLI, Maria Salete A. – A obesidade como sintoma: uma leitura psicanalítica, São Paulo, Editora Vetor, 2000.
MAC DOUGALL, Joyce – Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise, trad., São Paulo, Martins Fontes, 1996.
MASI, Domenico de – O ócio criativo, trad., São Paulo, Sextante, 2000.
MAUSS, Marcel – “As técnicas corporais” in Sociologia e antropologia, trad., EPU, EdUSP, 1974.
NOVAES, Joana de Vilhena – O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos, Rio de Janeiro, Ed PUC Rio,. Gramond, 2006.
ROBELL, Suzanne – A mulher escondida: a anorexia nervosa em nossa cultura, São Paulo, Summus Editorial, 1997.
VIGARELLO, Georges – História da beleza: o corpo e a arte de se embeleza do Renascimento aos dias de hoje, trad., Rio de Janeiro, Ediouro, 2006.