CONSCIENCIA E SAÚDE
ANA LÚCIA FRANCISCO
Psicoterapeuta – Doutora em Psicologia Clinica PUC – SP
Professora – Pesquisadora no Mestrado em Psicologia Clinica – Universidade Católica – PE
Somos herdeiros da modernidade, o que implica em dizer que tomamos como ideário, seja de ciência seja de organização da sociedade, a busca pelo controle e pela previsibilidade, ambição que deveria ser operada pela razão instrumental. De pronto, a mente, muitas vezes reduzida à razão, tornou-se separada do corpo, passando a ter sobre ele domínio; o homem passou a se perceber como distinto da natureza, também passível de ser a ele submetida; a busca pela univocidade da verdade produziu um homem fragmentado e tantas outras dicotomias passaram a reger nosso modo de pensar, de agir e de sentir: interior x exterior, saúde x doença, afeto x razão. A razão, então soberana, deveria forjar um corpo obediente, disciplinado, pouco afeito à contaminação dos afetos e às possibilidades de afetar-se. Cria-se um corpo máquina, agora tornado objeto: corpo biológico e fisiológico, regido por leis capazes de explicar o seu funcionamento. Também neste contexto e como reflexo deste modo de pensar, saúde é concebida, portanto, como ausência de doença e consciência reduzida à apreensão de informações e/ou conhecimentos.
O que pretendo, nesta comunicação, tomando como referencia este solo no qual aprendemos a pensar e sentir, é apresentar uma outra possibilidade para se olhar este homem, tomando-o não como fragmentado, mas totalmente sistêmico, como um organismo. Pensar o homem como um organismo exige que revisitemos alguns de nossos conceitos e coloquemos sob questão o paradigma simplista e reducionista que se encontra na base deste modo de pensar.
Para começar vou tomar de empréstimo algumas reflexões trazidas por Leonardo Boff (1997) em um riquíssimo texto que tem por título Identidade e Complexidade. Em seu inicio o autor nos propõe uma instigante questão: o que compõe a carteira de identidade do ser humano? Frente a esta proposição, seguem suas palavras: “A historia pessoal é parte da história bio-sócio-cultural. Esta, por sua vez, é parte da história cósmica. Esse enraizamento confere ao ser humano concreto uma quádrupla identidade” (p.61). Neste sentido, somos cósmicos porque vivemos das mesmas partículas que compõem o universo, os átomos de carbono, oxigênio e nitrogênio imprescindíveis à vida, vitais em nossos processos de respiração. Somos terrenos porque representantes de um processo de desenvolvimento de formas primitivas de vida que se anunciaram na terra há bilhões de anos, constituindo-nos, dentre outras espécies vivas, como Homo Sapiens. Temos uma identidade cultural: “o ser humano criou a cultura, realidade especificamente humana. Criou-a a partir de intervenções sobre si mesmo e sobre a natureza”. (p.62). Estas intervenções, por sua vez, permitiram a criação de um habitat humano, uma morada humana, um ethos, palavra originária de ética em grego. Finalmente, temos uma historia pessoal, um nome próprio, mas, também um sobrenome, o que nos confere uma radical singularidade, ainda que atravessada, testemunha e porta-voz daqueles que me antecederam e daqueles que virão. O “eu sou” porta o coletivo, os tantos outros que me fundaram como humano.
Carteira de Identidade bastante complexa porque fruto de um quádruplo enraizamento: o cósmico, o terrenal, o cultural e o pessoal, que não podem ser vistos como dissociados, mas, ao contrário, formam uma intricada teia de solidariedades e interdependências, exigindo um modo de pensar a partir de um principio auto-eco-organizativo. Autonomia implica em dependência, saúde implica em doença, mente-corpo compondo uma mesma realidade, sendo ambos passiveis de serem subjetivamente objetivados e objetivamente subjetiváveis.
Abandonando, portanto, o paradigma simplista e reducionista a favor de um pensar complexo; abrindo mão de uma perspectiva fragmentada e fragmentária do humano em direção à compreensão do profundo diálogo e mútua afetação entre todas as dimensões que o compõem, o que lhe confere uma realidade bio-psico-sócio-cultural e espiritual, sem deixar de considerar as especificidades de cada um destes campos; será, neste contexto, que pretendo contribuir com reflexões sobre esta temática – saúde e consciência.
Partirei de duas premissas que considero fundamentais: a primeira é a de que saúde e doença não se referem ao corpo ou a psique, como entidades distintas e que, ao contrário, são parte de um mesmo processo. A segunda, diz respeito à consciência, compreendendo-a como construção permanente, o que implica em um contínuo educar-se. Consciência, portanto, como atitude reflexiva, viabilizada no cotidiano das pessoas, o que permite avaliação e mudanças de posturas que visam o crescimento pessoal e a possibilidade de transformação de mentalidades dirigidas a constantes posicionamentos frente ao mundo que nos cerca e do qual somos parte.
Isto posto, nosso primeiro movimento será retomar o conceito de saúde, tal como nos apresentado pela Organização Mundial de Saúde (1948): “saúde é o completo bem estar físico, mental e social e não ausência de doença”. Sem desmerecer a importante evolução que este conceito comporta, acreditamos que ele possa ser questionado, mesmo porque nos parece que ele parte de premissas equivocadas. Poderíamos indagar: É possível um completo bem estar? O que consideramos Bem-estar? É possível uma existência sem dores, sem agonias?
Se o bem-estar físico se manifesta/expressa em um corpo, mais uma reflexão se faz necessária: O que é o corpo? Apenas um organismo biológico e fisiológico, regido por leis capazes de explicar o seu funcionamento? Um objeto a ser disciplinado e corrigido pelas inúmeras tecnologias que prometem beleza e perfeição? Acreditamos que não. A perspectiva que nos guia compreende o corpo tal como sugerido por Leonardo Boff (1999): “corpo é aquela porção do universo que nós animamos, informamos, conscientizamos e personificamos” (p.142) e, neste sentido, o corpo é um ecossistema vivo que se articula com outros sistemas mais abrangentes. O corpo, portanto, nos apresenta, nos situa, nos realiza em um mundo junto com outros e com todas as coisas vivas que nos cercam. Freud já sinalizava para este aspecto múltiplo do corpo ao dizer que o “eu é antes de tudo corporal”. Somos introduzidos ao mundo pelo corpo e é nele que se encontram inscritas não só nossa trajetória pessoal, mas a nossa memória mais arcaica. Mas a contribuição trazida por Freud vai além quando, para além de um corpo biológico e fisiológico, propõe um corpo erógeno, um corpo capaz de ser subsidio e subsidiar as nossas experiências, um corpo subjetivo, portanto, o que torna sem fundamento a dicotomia corpo-mente.
Nestes termos, doença não significa comprometimento apenas de um órgão ou de uma faculdade mental, mas um dano a toda a existência. Quando se adoece, é a vida que adoece em suas várias dimensões. Se entendermos saúde e doença como dois lados de uma mesma moeda, não há um estado de equilíbrio permanente, mas sempre provisório rompido por desequilíbrios que impulsionam o organismo como um todo à busca de uma auto-eco-organização. Saúde como meta-estabilidade, designando um processo de adaptação e integração das mais diversas situações. Saúde, portanto, não é um estado nem um ato existencial, mas uma atitude face às varias situações, que podem ser doentias ou sãs. Como também lembra Leonardo Boff (1999): Ser saudável significa realizar um sentido de vida que englobe a saúde, a doença e a morte. … Como dizia um conhecido médico alemão: “saúde não é ausência de danos. Saúde é a força de viver com esses danos”. Saúde como potencia de vida e adoecimento como despotencializaçao, inibição ou fratura do ethos humano, desenraizamento em uma ou mais dimensões do existir.
Provavelmente é para o adoecimento compreendido como desenraizamento, como fratura do ethos humano que o mal estar da contemporaneidade está nos indicando. Desenraizados de nossa condição humana, a saúde passa a ter apenas uma função estetizante, operada pelos mais variados procedimentos de manipulação e intervenção sobre ela. Ter saúde é uma palavra de ordem, associada às inúmeras fórmulas e receitas dirigidas a uma saúde perfeita. Mas, paradoxalmente, quanto mais “cuidamos” da saúde, mais adoecemos, ainda que sejam crescentes as campanhas de conscientização voltadas à prevenção e cuidados à saúde, parecendo, no entanto, longe de atingirem os seus objetivos.
É possível que na base destas campanhas preventivas, chamadas campanhas de conscientização, exista o equivoco já referido por nós no inicio desta reflexão, qual seja, a crença de que conscientização resulte, apenas, de um processo de apreensão de informações ou de esclarecimentos formais. Não que estes não sejam necessários, mas, para além de tomar consciência de, nos parece necessário construir consciência para, e, neste sentido, consciência também é processo que se realiza a partir de dentro. Retomando as palavras de Merleau-Ponty (1999:269):
…o corpo não é um objeto. Pela mesma razão, a consciência que tenho dele não é um pensamento, quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara…. Quer se trate do corpo do outro ou do meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele.
Vale ressaltar que um dos dramas que transpassa este corpo é a sua inevitável finitude, o que se inicia desde o momento em que nascemos. Ter consciência de nossa condição trágica de finitude e mortalidade, longe de levar-nos a um processo de resignação, de acomodação ou de uma vida inconseqüente, pode ser propulsora de uma construção existencial pautada no mais absoluto compromisso com a vida, já que, nas palavras do poeta Lenine, ela é tão cara e tão rara.
Finalmente, cumpre lembrar que consciência e saúde se articulam com cuidado: cuidado com a vida que nos anima, cuidado para com a realidade que nos circunda (alimentação, higiene, o ar que respiramos, o modo como moramos, o espaço ecológico em que vivemos) e para com as pessoas que nos são significativas. Consciência e saúde significando a busca de assimilação criativa de tudo o que nos possa ocorrer na vida, compromissos e trabalhos, encontros significativos e crises existenciais, sucessos e fracassos, saúde e sofrimento. É possível que este seja um dos caminhos para nos tornarmos mais amadurecidos, o caminho que torna possível transformar sofrimento em sabedoria.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:
BOFF, Leonardo. Identidade e Complexidade. In Ensaios de Complexidade. Coordenação de Gustavo de Castro et.al. Porto Alegre:Sulina, 1997.
_________ Saber cuidar: ética do humano -compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
MERLEAU PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.