SELF, CULTURA E ECOLOGIA
Rejane Pinto de Medeiros
Vive-se hoje, o resultado de um período de desenvolvimento da industrialização capitalista, quando o lucro e a produção norteiam o comportamento do mundo ocidental, reforçando valores que privilegiam o individualismo e o consumismo. Os avanços na informática, na comunicação e nos transportes ampliaram o conceito de espaço e tempo, levando o fenômeno da globalização às mais longínquas cidades. O stress, a solidão, a falta de solidariedade, a competitividade é uma constante no cotidiano dos homens e mulheres nas metrópoles. Assim, o olhar e a atenção voltam-se para o exterior, em busca de oportunidades e defesas contra as ameaças desse mundo em ebulição.
Ao tentar acompanhar o ritmo frenético do cotidiano as pessoas desrespeitam o seu próprio tempo e começam a viver sem se reconhecerem. As suas referências vêm de fora e são extremamente mutáveis, pois a mídia e o marketing encarregam-se de incentivar novos comportamentos, produtos e modas. Ansiosos em se sintonizarem com o mundo externo os indivíduos distanciam-se das suas próprias referências, adotando valores e atitudes que nem sempre estão de acordo com o seu próprio self.
O trabalho com pesquisas na área do turismo tem revelado uma fragilidade, cada vez maior, das nossas comunidades praieiras ao serem invadidas pela voracidade do turismo de massas, subordinado à lógica do capitalismo. Pequenas vilas litorâneas do Nordeste brasileiro (CAMURÇA, 2003; ESMERALDO, 2002; MEDEIROS E OLIVEIRA, 2005) viveram um processo rápido de transformação, no final do século XX, sem que a sua população estivesse preparada para enfrentar a convivência cotidiana com outros povos e outras culturas. Situação essa que remete às palavras de Souza (2004: 93) sobre os efeitos dessa contemporaneidade: “os riscos de uma fragmentação da humanidade, se já fragmentados não nos encontramos, em vez da construção de uma humanidade multicultural”. Essas alterações repercutem, também, no meio-ambiente, com a devastação da vegetação nativa e de áreas de mata atlântica, ameaçando o equilíbrio do ecossistema.
Essa fragmentação, falta de harmonia consigo, com o seu passado, leva ao que Lowen chama de encouraçamento, bloqueando o desenvolvimento natural desse ser: “a única maneira de conseguir o verdadeiro crescimento no presente é reviver o passado. Se o passado for eliminado, não existirá o futuro” (LOWEN, 1982: 30).
Buscar o passado, através da cultura, é retomar as formas de expressão, o modo de viver e os padrões aprendidos e desenvolvidos pelo grupo social. Cultura, entendida como “formas de organização de um povo, seus costumes e tradições transmitidas de geração para geração que, a partir de uma vivência e tradição comum, se apresentam como a identidade desse povo” (http://pt.wikipedia.org./wiki/Cultura).
E, nessa perspectiva, o trabalho de recuperação do passado do indivíduo e da sociedade se encontra quando ambos contribuem para a preservação da essência do ser humano e do grupo social. Assim, o resgate das raízes culturais de um povo contribuirá para a retomada do desenvolvimento natural e da saúde dessa sociedade.
SELF: INTERSUBJETIVIDADE E VIDA
O caminho percorrido pela Psicologia até a Análise Bioenergética é longo e remete, inicialmente, a Sigmund Freud e à sociedade repressora que acompanhou o desenvolvimento das suas idéias. A sua teoria foi estruturada sobre dois princípios básicos: os eventos psíquicos são determinados por eventos precedentes, não havendo acasos na vida mental, e o inconsciente influencia o comportamento humano (GUANAES, 2003).
No início do século seguinte a psicanálise estava estabelecida e reconhecida enquanto instituição, reunindo os seus integrantes na Associação Internacional de Psicanálise aonde Wilhelm Reich não chegou a ingressar. Alguns autores alegam que ele não foi aceito e outros que ele teria rompido com a entidade e, conseqüentemente, com Freud (BOADELLA, 1985; WAGNER, 1996). A sua crítica ao moralismo burguês e sua participação ativa em movimentos políticos incomodavam. Ele retomou um ponto da teoria freudiana relativa à teoria original do instinto, centrada no conceito de energia psíquica. Com a teoria do orgasmo promoveu a compreensão bioenergética da psicanálise inicial e procurou mostrar a relação entre o bloqueio dos impulsos instintivos e o aparecimento de defesas danosas ao desenvolvimento da criança.
A crença no ser humano e na vida contribuiu para que Alexander Lowen, discípulo de Reich, continuasse o caminho iniciado por seu mestre e orientador, chegando à elaboração de uma nova proposta: a Análise Bioenergética. Um dos aspectos mais importantes resgatados da teoria reichiana refere-se ao uso da respiração no processo terapêutico: “a diminuição da respiração diminui a absorção de oxigênio e reduz a produção de energia do metabolismo. O resultado final é uma perda de afeto e um rebaixamento do tônus emocional” (LOWEN, 1977:31).
A questão do amor a si próprio e à vida é um tema recorrente nos estudos de Lowen, assim como o aperfeiçoamento da “capacidade de dar e receber amor, ampliar e desenvolver o coração, e não só sua mente” (Idem, 1982:77). Haveria, então, a possibilidade de crescimento da pessoa, pondo em ação “forças intrínsecas à personalidade, cuja função é ampliar e expandir todos os aspectos do self (auto-percepção, auto-expressividade e auto-domínio)” (Ibidem: 102).
Muitos autores recorrem à noção de falso self para tentar referir-se ao verdadeiro self, passando ainda pelo processo de inserção da criança no mundo real, através da mãe ou de quem a substitua. Todos buscam apoio em Donald Winnicott que, através das suas obras, procurou demonstrar como o trabalho psicanalítico imita “o processo natural que caracteriza o comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança” (WINNICOTT, 2001:28), no sentido de introduzi-la na nova realidade como uma “mãe suficientemente boa”. Através da mãe a criança inicia a sua inclusão na sociedade, tendo a possibilidade de desenvolver o seu potencial ou esconder-se sob um falso self, não emergindo como um ser integral.
Preocupado com a influência do mundo externo sobre o mundo interno do bebê, Winnicott revela que os instintos servem ao self, mas não o constituem. As suas idéias destacam a importância da intersubjetividade e da ação do próprio sujeito nesse desenvolvimento emocional e, por conseguinte, da própria sociedade, destacando o aspecto inter-relacional ou social na constituição do psiquismo humano.
Estaria na origem do self a tendência do ser humano em permanecer vivo, sendo compreendido por Gilberto Safra (2005:130) como “uma organização dinâmica que possibilita a um indivíduo ser uma pessoa e ser ele mesmo”. Mas a dificuldade quanto à conceituação é destacada por esse mesmo autor ao ressaltar o fato de que “a pessoa e o self transcendem a categoria conceitual, pois o self acontece no mundo em um transbordamento contínuo de si mesmo. Ele acontece na materialidade do encontro humano e ganha morada no tempo, no espaço, no gesto e no campo sociocultural”(Ibidem:76).
Mas os apuros vividos pelos autores de textos que abordam a questão do self parecem enriquecer a produção sobre essa temática, levando-os a caminhos que percorrem o processo de constituição do ser e do self, desde os primeiros momentos do bebê, ou aos encontros e desencontros que possibilitarão, ou não, a expressão do gesto genuíno da criança. Como a análise trata da essência da vida, do amor e do desabrochar das pessoas, muita poesia e beleza surgem durante essa caminhada que atravessa o prazer do afeto correspondido ou a dor da solidão:
O gesto espontâneo é o verdadeiro self em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real. Enquanto o self verdadeiro é sentido como real, a existência do falso self resulta em uma sensação de irrealidade e em um sentimento de futilidade (WINNICOTT, 1983:135).
Uma das características de um comportamento do tipo falso self pode ser o daquelas pessoas que estão sempre reagindo a alguma coisa externa, a viver em função de, ao invés de poderem ser fundamentalmente elas mesmas (MELLO FILHO,2001: 151).
A constituição do falso self acontece como proteção ao verdadeiro self que não foi suficientemente fortalecido pelos adequados cuidados maternos. Assim, o falso self surge para defender a criança com carências na adaptação ao meio, recorrendo assim a um esquema de defesas. Entretanto, esse recurso prejudica o desenvolvimento do indivíduo pois o “verdadeiro self se empobrece pela falta de acesso às experiências, uma vez que é o falso self que opera, usurpando assim a função daquele” (LINS, 2002:794). A interposição do falso self vai dificultar a adaptação do sujeito à sociedade e contaminar as suas relações e vivências no mundo, pois a sua percepção da realidade estará sendo bloqueada e interceptada por essa defesa.
A Análise Bioenergética foi pensada como uma abordagem terapêutica que “tem como objetivo o resgate da natureza primária que é a expressão livre e espontânea do ser” (ALVES; CORREIA, 2004:35). E esse gesto natural só poderá ser recuperado com um trabalho que tenha como meta o encontro do verdadeiro self, acesso à saúde, já que ele está “relacionado aos processos fisiológicos básicos, principalmente ao funcionamento do coração e à respiração” (MELLO FILHO, 2001:151). Assim, através do encontro consigo próprio (verdadeiro self) e com o outro (psicoterapeuta) o sujeito poderá vivenciar, verdadeiramente, o seu espaço de expressão e vida, qualificando a sua contribuição para o social.
Foi essa busca de si mesmo, para curar a divisão corpo-mente, que norteou a vida e, por conseguinte, a obra de Alexandre Lowen, precursor da Análise Bioenergética: “a cultura em que vivemos não se orienta à atividade criativa e ao prazer”, diz Lowen, pois ela “não se ajusta aos valores e ritmos do corpo vivo, mas sim àqueles das máquinas e da produtividade material” (LOWEN, 1982: 44-45). Ou seja, para que o organismo humano possa funcionar plenamente há a necessidade, cada vez mais, de estar atento a si próprio, ao self, ao corpo. É fundamental a conexão com a vida interior e não apenas com a exterior. A nossa realidade é aquela que está gravada em nós, no nosso corpo, através das emoções vividas por cada um: os encontros e desencontros, os amores e desamores, as raivas, as tristeza, as alegrias, as dores e os prazeres.
Os aspectos culturais da sociedade na qual o indivíduo se desenvolve estão presentes na constituição do self através dos encontros humanos. São os pais os primeiros a fornecerem à criança um campo e um repertório simbólico, dando espaço para que esse novo ser expresse a sua singularidade. Dessa forma inicia-se o intercâmbio contínuo “entre o sujeito e o outro, entre a vida subjetiva e a realidade compartilhada, entre o indivíduo e a cultura” (SAFRA, 2005: 43). Então, como o self, que tem como base constitucional a cultura, torna-se, portanto, a fonte para a reprodução e continuidade do fazer societário, na medida em que o homem é produto e produtor da cultura.
A expressão do verdadeiro self – que muitas vezes fica encoberto pelo falso self – é sinal de vitalidade e de fortalecimento do sentimento de realidade. A Análise Bioenergética atua, pois, no sentido de resgatar o verdadeiro self desse esconderijo, fazendo aflorar o sentimento de existência plena e o prazer de sentir-se vivo.
Para Winnicott a normalidade estaria “ligada à capacidade do indivíduo viver em uma área que é intermediária entre o sonho e a realidade, aquela que é chamada de vida cultural” (WINNICOTT, 1983:137). Então, a ação terapêutica proposta por Lowen contribui para que o analisando libere a sua capacidade de transitar entre o mundo interno (ele mesmo) e o externo, através da sua interação com o outro, agindo no sentido da continuidade de si e da sociedade, criando e recriando-se, assim como acontece com a cultura, com toda a sua dinamicidade.
REENCONTRANDO A IDENTIDADE
Diversas experiências estão sendo vivenciadas por grupos humanos, marginalizados em seu próprio país, no sentido de resgatar a história do seu povo, a sua cultura, fortalecendo, dessa forma, a identidade coletiva e as descobertas pessoais sobre si próprios. Esses processos de reconhecimento de si, através da apropriação de suas raízes, apontam no sentido do despertar das potencialidades do self.
Na América Latina, muitas organizações não-governamentais estão sendo criadas para promover a organização e a resistência de populações afrodescendentes. Acostumada a atuar junto a essas entidades, na auto-valorização da imagem física de cada integrante e, como conseqüência, “na valorização – auto-percepção – de sua personalidade, ou seja, na reconstrução da imagem”, Martha Mijares (2004:53) destaca a presença de um preconceito endoracial. O significado dessa rejeição, segundo a autora, é que o negro não aceitava o seu corpo e, por conseguinte, não se gostava, não se aprovava. Para eles, ter uma boa presença significava apresentar características físicas com marcada ascendência branca. Ela mostra que, principalmente as mulheres, queriam mudar traços físicos (cabelo, nariz, boca e cor da pele) para ter mais oportunidades na vida. A desqualificação atingia os próprios traços físicos e a personalidade dessas pessoas.
Com base em discussões e reflexões mantidas com os representantes mais idosos da etnia, o trabalho foi dirigido para a promoção da valorização positiva de cada um sobre si mesmo, sendo pautado a partir do que eles entendiam ser a auto-estima.
O objetivo central é ter consciência sobre a atitude auto-desqualificativa que se tem da imagem física, e partindo dessa ‘conscientização’ do prejuízo que existe dentro dos coletivos ‘afros’, realizar ações para enfrentar a situação de exclusão e/ou a presença de atitudes racistas (Ibidem: 56-57).
O resgate dessa identidade passa pelo reconhecimento e aceitação das referências africanas, tanto no tocante ao corpo, ao físico, como aos conteúdos culturais, aflorados no depoimento dos mais velhos. A riqueza do processo fortalece o grupo e os indivíduos tornando-os mais qualificados na luta pelo seu próprio espaço e sua inclusão na sociedade, enquanto não-brancos. A aceitação de si próprio desponta como ponte para a conquista de um lugar, enquanto cidadão ou cidadã, na estrutura social que teima em desconhecê-los.
Na Venezuela, a organização dos excluídos tem como referência uma “Cultura de Resistência” que, segundo Jesús Garcia, constitui-se como “um processo dinâmico onde os elementos culturais originários se opuseram ao seu desaparecimento” (GARCIA, 2001:50), apesar da pressão contrária por parte de autoridades locais. A luta pela participação política e sócio-cultural, nesse caso, atravessa, também, o auto-reconhecimento como afrodescendente e o resgate histórico que favoreça uma “auto-apropriação definitiva” da africanidade (Ibidem:51).
A invisibilidade do negro na sociedade equatoriana é analisada por Walsh e García (2002) que apresentam o percurso organizativo dos afrodescendentes na reafirmação da sua diversidade e da sua existência enquanto povo. O trabalho em grupos vai desvendando, lentamente, todo um valor, antes escondido, acumulado no saber e na experiência dos seus integrantes com idade mais avançada:
Tanto a emergência do movimento afroequatoriano como o dos venezuelanos atesta a nítida relação entre o resgate da cultura e o conseqüente fortalecimento dessas coletividades, ou seja, da identidade de cada um dos seus membros. Um processo que atravessa o corpo, a pele, o cabelo, os valores, o pensamento, as tradições e os sentimentos dessas pessoas.
No Brasil, mais especificamente, na Bahia, os movimentos que resgatam a negritude dos seus habitantes buscam o seu reconhecimento a partir da sua produção cultural e musical. Com letras que remetem à África, “mãe libertadora”, e uma cadência característica, as canções embalam os foliões nos blocos carnavalescos, enquanto promovem a auto-afirmação dos negros (KUSTNER, 1336: 5). No ato de cantar e dançar, produzindo a sua própria expressão melódica, vão se assumindo e reforçando uma identidade própria, calcada no seu cotidiano de negros brasileiros, com a sua baianidade que atravessa continentes, como é o caso do Olodum e do Ylyê Aiyê.
Um processo semelhante, de resgate das raízes culturais, vem ocorrendo em uma praia do litoral brasileiro, na região Nordeste, por iniciativa de um grupo de jovens, através da elaboração de documentos retratando e ressuscitando o passado da comunidade de pescadores e agricultores que deu início ao povoamento local.
Antes da praia de Pipa transformar-se em pólo turístico, a vida era sentida como mais prazerosa, com mais liberdade e mais festas coletivas, segundo o depoimento de alguns moradores. O mundo deles limitava-se àquele município, onde plantavam, pescavam e comemoravam, coletivamente, a boa safra ou a abundância de peixes, com danças e muita alegria.
A chegada de pessoas, de diversos países, para conhecerem e até instalarem-se no pequeno arruado foi contribuindo para a perda de referências da população, atingindo, principalmente, os mais jovens. A influência cultural dos visitantes foi, gradativamente, contaminando o cotidiano dos moradores sem que fosse efetuada uma análise sobre esses novos costumes e comportamentos. A mudança foi se processando sem que houvesse uma visão crítica da situação por parte dos nativos: se queriam, ou não, adotar os novos modos de vida.
Os contatos com europeus e brasileiros, de maior poder aquisitivo, que chegavam à praia, como turistas, despertavam nos jovens o desejo de migrar para conhecer essa outra realidade, presente na fala e nos costumes dos visitantes. Sentiam-se inferiores diante deles, “sentiam-se pequenos”, como explicou uma adolescente. Assim, a saída daquele município surgia como uma possibilidade, para eles, de acesso ao outro mundo, recém descoberto.
Esse movimento em busca de referenciais externos, estranhos a si próprios, contribuiu para o sentimento de inferioridade e de desvalorização dos costumes, das danças e do modo de viver desses nordestinos. Foi um período em que o cotidiano do vilarejo começou a ser profundamente alterado, pois a tendência era seguir valores importados, externos à base constitucional daquela comunidade e do próprio self de cada morador ou moradora de Pipa.
Como contraponto a essa descaracterização da vida cotidiana, alguns jovens, com a ajuda de alguns profissionais apaixonados pela praia, criaram um projeto voltado para o resgate da história e dos costumes dali, através do depoimento dos moradores mais idosos. Esse foi um marco na vida de muitos jovens pipenses pois a gravação e a exposição do material, em praça pública, começou a provocar mudanças favoráveis à retomada de referenciais culturais locais e à fixação dos jovens no município. Os vídeos evocavam emoções, sentimentos de pertencimento e identificação dos valores próprios daquela cidade. E aos poucos o amor à Pipa foi sendo retomado, junto com o resgate da auto-estima dos envolvidos no projeto.
Após o resgate das raízes culturais, expressos na fala dos mais antigos, a comunidade começou a respeitar a história construída por eles mesmos, descobrindo o seu próprio valor, sentindo-se especiais. Aos poucos, a identidade perdida, de nativos, foi se reconstruindo. Eles reconheceram que eram diferentes de todos aqueles turistas e que tinham a sua própria identidade. Foi, então, nascendo o desejo de preservar e fortalecer os seus próprios padrões culturais.
Uma adolescente, participante do projeto de resgate, declara ter mudado a sua forma de ver o mundo e de ver-se, após vivenciar todo esse processo de execução do trabalho de registro histórico-cultural. Antes, era tímida e pouco falava, sentindo-se “vegetar” no trabalho como balconista de uma loja, enquanto alimentava o desejo de sair da sua terra. Depois, começou a sentir que estava mais viva, mais integrada à sociedade, mais capaz de falar e fazer-se ouvida. Aprendeu a gostar de si mesma e da cidade que ajudou a construir. Reaprendeu a admirar a simplicidade e a beleza da região que atrai visitantes durante o ano todo, desejando permanecer em Tibau do Sul, o seu município. Ela aprendeu a olhar para si mesma e buscar, no seu interior, os referenciais para o seu desenvolvimento como pessoa e cidadã.
O movimento observado nessa jovem praiana de reconstrução pessoal a partir do resgate cultural ilustra as palavras de Lowen ao reportar-se ao processo de mudança: “começa pela auto-aceitação e pela autopercepção” (LOWEN, 1982:102). Enquanto a adolescente não voltava o olhar para si e para a sua base cultural ela não sentia-se viva, inteira, apenas “vegetava”. À medida que foi sendo capaz de voltar o seu foco de atenção para si própria e para os seus pares ela começou a gostar mais de si, a respeitar-se e a lutar por uma história que também é sua: a praia de Pipa.
CULTURA E RESIGNIFICAÇÃO DO COTIDIANO
A cultura, assim como os seres humanos, está em permanente processo de construção e reconstrução, agregando novos saberes e experiências. Os estudos com grupos de afrodescendentes apontam para a estreita relação entre o resgate cultural, o fortalecimento dos seus integrantes e da capacidade de resistência das suas organizações. Revela, também, o reflexo desse olhar interior na elevação da auto-estima dos indivíduos envolvidos com a luta contra a exclusão social.
No Brasil, em alguns pequenos povoados localizados no litoral nordestino, tem sido possível observar a dificuldade inicial de convivência harmônica entre os habitantes dessas praias, os novos moradores que o turismo atrai e os viajantes de várias partes do mundo. O caso apresentado, de Pipa, revela como o impacto dessas mudanças pode confundir e debilitar uma comunidade isolada e ainda não integrada ao mundo globalizado. Entretanto, passado o primeiro momento, iniciativas diversas podem surgir no sentido do resgate da capacidade de organização dessas pessoas, enquanto um coletivo, e de suas próprias identidades.
A iniciativa dos jovens, empenhados em resgatar a história do seu povo, através do depoimento dos mais idosos, vai possibilitando uma nova leitura da situação. Manifestações culturais – danças e dramatizações – que pareciam sem importância, em um primeiro instante, passam a ser estimuladas e valorizadas como a afirmação da presença e da ação dos nativos. É como se eles mesmos se redescobrissem, tornando-se atores no novo cenário social e político da cidade. Deixando a invisibilidade, conquistam o direito de existirem e de viverem, lado a lado, com os imigrantes e turistas.
O desenvolvimento de um projeto de jornal na praça, da biblioteca, da utilização da internet vai alargando os horizontes da comunidade que vivia no isolamento. A desestabilização provocada pela invasão turística vai dando lugar à reafirmação de elementos formadores da identidade do grupo, através da resignificação de modos de vida, de manifestações culturais e aspectos do cotidiano que não eram valorizados.
A visitação do passado vai propiciando encontros simbolizados entre entrevistados e entrevistadores, permitindo a emergência, em cada um, das suas reais referências: um reconhecimento do seu próprio ser, do seu self.
O resgate cultural favorece o fortalecimento do indivíduo, enquanto integrante de uma coletividade, propiciando a sua autopercepção e a sua auto-aceitação, aspectos fundamentais no processo de mudança, busca do equilíbrio e da saúde. Então, nesse sentido, pode-se dizer que o movimento de retomada da auto-estima favorece uma intervenção terapêutica com base na Análise Bioenergética, já que volta o foco do indivíduo para os elementos constituintes do seu self. E, como destaca Lowen, “o caminho do crescimento é estar em contato com meu corpo e entender o que ele diz” (LOWEN, 1982:102).
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Mestra em Sociologia e especialista em Psicologia Social e Clínica. É pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco e psicoterapeuta de adultos – foco em Análise Bioenergética. Atua como Conselheira Efetiva do Conselho Regional de Psicologia – 2ª região, coordenando a Comissão de Políticas Públicas. E-mail: rp.medeiros@terra.com.br