WILHELM REICH
60 ANOS DE GENIALIDADE
TÂNIA ALDA BUARQUE DA SILVA
Sociedade de Análise Bioenergética da Bahia – SABBA – Trainer Local
Este trabalho foi realizado por ocasião do aniversário de 50 anos da morte de Wilhelm Reich. Novembro de 2007
A história de sua genialidade começa na infância farta, livre e trágica, vivida numa fazenda da família, em uma província da Áustria. Primeiro filho de Leon Reich e Cecília Roniger Reich, nascido em 24.03.1897. Foi o filho preferido de uma mulher sensível, mãe afetuosa e indulgente e de um homem prático e rígido, pai autoritário e dominador (Sharaf). A tragédia se anuncia em sua vida quando, por volta dos 11 anos, acompanha com crescente interesse, medo e excitação ao romance de sua mãe com um de seus tutores. Se por um lado isto, de alguma forma, o excitava e fazia-o sentir-se vencedor diante do pai, por outro lado enchia-o de culpa e pânico com a possibilidade de que este viesse a descobrir a traição – também sua. Assim foi, tingida por cores tão fortes, sua entrada na puberdade. Como tão bem o pequeno Reich pode sentir, a roda da tragédia começa a mover-se quando seu pai arranca-lhe o segredo e, descobrindo-se traído pela mulher, transtornado pelo ciúme e a “desonra”, descarrega sobre ela sua raiva, na forma de intensas cenas ciúmes, acusações e maus tratos. Ela, não suportando o peso da situação, entra em depressão e, pouco mais de um ano depois, comete suicídio. Reich estava, então, com 13 anos. Não bastasse ter perdido a mãe, nesta idade e de forma tão traumática, quatro anos depois, seu pai, torturado pelo remorso e a culpa, descuida de si e adquire uma tuberculose da qual morre, deixando o jovem Reich órfão aos 17 anos, tendo apenas seu irmão, Robert, três anos mais jovem, como companheiro. Um ano depois, em função de dificuldades financeiras e da situação política do país, os dois irmãos perdem a fazenda ficando na mais completa pobreza. Robert vai morar com a avó materna e Reich entra no exército da Áustria onde, em 1916 se torna oficial e participa da primeira guerra mundial.
Ao retornar da guerra, em 1918, entra na Faculdade de Direito de Viena, mas, antes do final do ano transfere-se para a Faculdade de Medicina. Seu interesse volta-se logo para a psicanálise, uma ciência que estava florescendo e que, podemos supor, mostrava-lhe um caminho para compreender e talvez aplacar o gosto amargo da tragédia em sua vida.
Teve seu primeiro contato com a psicanálise no segundo ano de medicina, através de Otto Fenichel que, á época, organizava um seminário para estudo da psicanálise. Reich participa ativamente e já no final deste ano dirige o seminário. Este é um fato típico de sua vida, quando se interessava por algo ia fundo e logo assumia posição de liderança, tendo a capacidade de agregar muitas pessoas em torno de si mesmo e de uma causa.
É nesta época que começa a desenvolver sua crença de que a sexualidade é o centro da resolução dos problemas pessoais e sociais do ser humano. Crença esta que, de uma forma ou de outra, perpassa sua obra e o acompanha por toda sua vida.
Toda a década de 20 e metade da década de 30 Reich dedicou muito do seu gênio à psicanálise e ao desenvolvimento de sua Teoria do Orgasmo e da Análise do Caráter. Durante quase 10 anos foi líder do seminário de técnica psicanalítica de Viena e, foi neste período que desenvolveu os conceitos de Potencia orgástica (1924); descobriu que a todo processo psicoterápico subjás uma transferência negativa e que isto é uma forma muito intensa de resistência; defendeu que esta transferência deve ser conscientizada e trabalhada com o cliente antes de se tratar dos conteúdos inconscientes, mesmo que estes apareçam antes, sob o risco de perder-se o trabalho terapêutico; introduziu a questão de que devemos olhar a forma do cliente se expressar e se relacionar com o terapeuta, não apenas escutar o que é dito, pois a linguagem do corpo não mente enquanto que as palavras podem ser manipuladas em favor das defesas do ego. Foi este olhar para o corpo que o tornou precursor de todas as psicoterapias de abordagem corporal.
Foi também, nesta época, que desenvolveu a análise do caráter como um trabalho cuidadoso e sistemático sobre as resistências, postulou que estas devem ser analisadas do mais superficial para os mais profundos níveis da personalidade; compreendeu que a atitude do cliente precisava ser dissecada, pois, para que houvesse mudança, não bastava que o cliente compreendesse o que se passava consigo, mas, principalmente, como atuava, pois esta forma de agir é o que mantinha sua neurose. Trouxe uma atitude mais ativa por parte do analista, que até então ficava “esperando” que o cliente associasse livremente. Os psicanalistas mais jovens gostavam das inovações, viam aí uma possibilidade de ampliação da técnica. Mas alguns dos mais antigos discordavam, criavam forte resistência, e, ao que parece, Reich não foi muito tolerante com as discordâncias, tanto neste momento como em muitos outros ao longo de sua vida. Sempre teve um gênio dominador e, ás vezes, tornava-se explosivo quando confrontado ou questionado, em seu trabalho, por pessoas que ele não colocasse em posição de autoridade, ou por quem não tivesse grande respeito como profissional. E não eram muitas as pessoas que ocupavam este lugar para ele.
Acredito que sua escolha de trabalhar e investigar determinados aspectos da teoria psicanalítica, assim como sua relação emocional, tão intensamente transferencial, com Freud foi profundamente influenciada por sua história de vida. Ao que parece projetou neste a figura do pai e aspirava por ser seu filho predileto, coisa que nunca aconteceu. Sentiu-se magoado e rejeitado quando Freud não o aceitou como cliente. Freud era caloroso e o admirava por sua criatividade e dedicação, mas foi tornando-se frio e distante quando as novas descobertas de Reich foram se contrapondo aos caminhos que a psicanálise estava tomando (Sharaf). Creio que a intransigência de Reich também contribuiu para o distanciamento de Freud.
Enquanto trabalhava com intensidade, também com intensidade levava sua vida pessoal. Em Março de 1922 Reich se casa com Annie Pink, uma estudante de medicina, que havia sido sua paciente e que, também, se tornaria psicanalista. Em 24 nasce Eva, primeira filha do casal e em 28 Lore, a segunda filha. A vida conjugal de Reich com Annie foi bastante conturbada. Em parte porque, apesar de estarem apaixonados, o casamento aconteceu em função da pressão do pai de Annie, e com isto Reich nunca se conformou; em parte também porque Reich tinha a expectativa de que a esposa se envolvesse com interesse e anuência nas causas ás quais ele se dedicava, o que nem sempre acontecia. Segundo Sharaf esta era uma expectativa que ele sempre tinha com relação ás pessoas de seu convívio: amigos, colaboradores, etc.; e muitas vezes sentia-se magoado ou até raivoso quando isto não acontecia.
Abril de 26, outro duro golpe na vida de Reich: morre de tuberculose, seu único irmão, com apenas 26 anos de idade. No ano seguinte o próprio Reich fica internado durante seis meses num sanatório na Suíça, também com tuberculose. Neste período torna-se um tanto paranóico e também desenvolve a crença de que tem “um destino heróico e que contribuiria muito para o bem da humanidade”. Ao mesmo tempo em que temia, como falou em alguns momentos, “morrer só, como um cão”- palavras suas.
Foi nesta época que aumentou seu interesse pelas questões sociais. Até então priorizava as questões internas como causa da neurose, a partir daí ficou mais consciente de como os fatores sociais interferiam no desenvolvimento e no tratamento dos distúrbios emocionais. Este foi um dos temas que o separou do pensamento psicanalítico. Enquanto Freud acreditava que os conflitos sexuais tinham origem no conflito entre forças intrapsiquícas (instinto de vida e instinto de morte), para Reich o conflito se dava entre o desejo sexual e a repressão social á sexualidade. Acreditou que as mudanças sociais junto ao trabalho na clínica psicológica, resolveria o problema da neurose humana. Começou a trabalhar junto ao Partido Comunista que na época estava se expandindo e que parecia mostrar um caminho para a melhora de qualidade na vida das pessoas, pois, além de pregar igualdade sócio-econômica, apontava para uma maior abertura nos valores de um modo geral e, em particular, nas questões que diziam respeito á sexualidade. Reich defendeu idéias, que só algumas décadas depois puderam se incorporadas á vida das pessoas, tais como: igualdade de direitos entre homens e mulheres, inclusive na divisão das tarefas domésticas e no cuidado com os filhos; independência econômica e liberdade sexual para a mulher; liberdade sexual para os jovens, com orientação sobre contracepção e cuidados com a higiene sexual; educação sexual, clara e direta, para crianças e, a legalização do aborto.
Se pensarmos que tudo isto se deu nas décadas de 20 e 30, que a revolução sexual e dos costumes só se concretizou após a segunda metade do século passado, podemos imaginar o quanto este homem estava á frente de sua época. Foi um pioneiro, um visionário e por isto foi muitas vezes visto como pervertido, mal intencionado e, até mesmo, louco.
Acreditou que poderia unir os conceitos Freudianos com a teoria Marxista, no entanto o mundo não estava preparado para idéias tão libertárias e em 32 foi expulso do Partido Comunista de Berlim, por sua defesa das questões sexuais que, segundo o partido, iam de encontro ao pensamento Marxista.
No inicio de 33 Hitler sobe ao poder, o nazismo começa a ascender na Alemanha. Neste mesmo ano Reich escreveu Psicologia de Massas do Fascismo, no qual analisa a questão do nazismo e da submissão das massas. Em Março, num jornal nazista, foi publicado um ataque a um artigo seu, sobre a sexualidade na juventude, e ele, temendo represália por suas atividades, seus escritos e por ser judeu, deixa Berlim com a família de volta a Viena, de onde havia saído em 1930 e onde permaneceria por mais alguns meses.
Começa aí sua peregrinação pela Escandinávia, que só termina com sua mudança para os EUA, em meados de 39, no último navio a deixar a Noruega rumo aos EUA antes da irrupção da II Guerra Mundial. Mais uma vez fugindo da perseguição dos inimigos.
Chamo de peregrinação a esta época porque ao longo destes seis anos mudou-se inúmeras vezes. Em Maio de 33 chegou a Copenhague, na Dinamarca onde muitas pessoas o procuraram para fazer terapia e para estudar com ele. Neste período tratou de uma mulher que, durante a terapia, tenta o suicídio e foi denunciado ás autoridades, pois o médico que a atendeu disse que a tentativa era resultado do tratamento com Reich, quando, na verdade a paciente já tinha um histórico de tentativas anteriores. Sofreu uma perseguição por parte da imprensa, um jornal pediu sua expulsão do país e seu visto não foi renovado. Em 1º de Dezembro seguiu para Malmo, na Suécia onde ficou por mais seis meses quando seu visto expirou e, outra vez, não foi renovado porque havia, aí também, suspeitas relativas ás suas atividades. Os rumores diziam, quase sempre, respeito ao seu trabalho com as questões sexuais. Muitas vezes alunos, pacientes e supervisandos seus, eram interrogados pelas autoridades, que queriam saber o que eles faziam. Esta perseguição, neste e em muitos outros momentos de sua vida, foi o preço que Reich pagou por estar á frente do seu tempo. Retorna, então, para a Dinamarca, desta vez ilegalmente com o nome falso de Peter Stein. Fica aí mais alguns meses e, no outono de 34, muda-se para a Noruega convidado por um proeminente professor de psicologia que lhe oferece a oportunidade de ter disponível um laboratório para suas pesquisas – estava iniciando suas pesquisas com os bions, como veremos adiante. Apesar de todas estas mudanças nunca parou seu trabalho seja como pesquisador seja como psicoterapeuta. Muitas pessoas vinham de outros paises para ter sessões com ele.
Neste período, começou a pesquisar e desenvolver técnicas de trabalho com o corpo. Comprovou, através de experimentos com o potencial elétrico na superfície da pele, sua teoria do orgasmo. Ampliou sua teoria do caráter e observou o papel da respiração no organismo: quando o paciente liberava a emoção adequada, muitas vezes estimulado por toques – imaginem naquela época tocar no paciente! – a respiração fluía profunda e naturalmente, restabelecendo a pulsação orgânica e a saúde emocional. Foi deixando de lado a questão das memórias infantis e dando atenção ao jogo de forças entre o fluir da energia e das emoções por um lado, e por outro, a rigidez muscular e o medo do prazer; dedicou-se ao estudo das correntes vegetativas no organismo e do sistema nervoso autônomo. Inovou de várias outras formas: atendia sentado frente a frente com o cliente; muitas vezes respondia a perguntas de sua vida pessoal, pois acreditava que era benéfico para o cliente ver a humanidade do terapeuta; começou a atender os pacientes sem, ou com pouca roupa, o que era um escândalo para os padrões da época. Nomeou esta nova forma de terapia de Vegetoterapia.
Também neste período iniciou seu trabalho como cientista natural. Quando fez sua pesquisa sobre o potencial elétrico da pele, numa série de experimentos observou que havia uma diferença no potencial elétrico da pele das zonas erógenas para a pele do resto do corpo. Nas primeiras o potencial era menos estável, ou seja, variava mais e, também, apresentava um aumento da carga que crescia proporcionalmente na medida em que aumentava a sensação de prazer e decrescia na medida em que este diminuía, ficando muito mais baixo na situação de angústia – estava estabelecida a antítese entre sexualidade e angústia; percebeu, também, que o potencial diminuía com a inspiração e aumentava com a expiração. Com isto pode comprovar pelos meios científicos da época, questões que já observava na sua prática clinica. Mas, com sua tão característica sede de conhecimento não parou por aí, queria saber mais sobre o ser humano e sobre os movimentos plasmáticos do organismo. Iniciou, então, uma série de pesquisas com protozoários, e o desenvolvimento desta pesquisa levou-o a encontrar em matéria inorgânica, partículas com características orgânicas, que ele chamou de bions. Acreditou ter encontrado algo que estava na transição entre o inorgânico e o orgânico. Prosseguindo sua pesquisa com os bions percebeu que havia dois tipos que funcionavam de forma antagônica, um em relação ao outro; a um destes tipos chamou de bions Pa e ao outro de bacilos-t. Estes últimos provocavam câncer em ratos com eles inoculados, enquanto os bions Pa pareciam dificultar, e até mesmo impedir, o desenvolvimento dos tumores. Um engano, de uma de suas assistentes, levou ao desenvolvimento de uma nova cultura, que Reich chamou de bions sapa. Estes eram semelhantes aos bions Pa só que possuía forte irradiação, emitia uma luz azulada, causava vermelhidão e comichão na pele e mostrou, também, ter efeitos curativos. E como Reich descobriu isto? Aplicando esta irradiação sobre uma verruga em seu rosto, que sabia conter bacilos-t. A verruga desapareceu! Estava dado o pontapé inicial para sua futura pesquisa na área do câncer.
Aqui, como em muitos outros momentos, havia muita crítica, a sempre presente descrença e, também, a sempre presente campanha dos jornais contra seu trabalho. Mas muitos de seus experimentos foram comprovados por cientistas de renome, como também foram rechaçados por outros, como sem valor, sendo que, estes últimos não repetiram os experimentos dentro dos critérios estabelecidos por Reich em suas pesquisas. Ao que parece suas descobertas foram pesquisadas á exaustão e um novo passo só era dado quando o anterior já havia sido bastante explorado.
Parece-me ser uma característica de Reich o fato de que quanto mais discordavam dele, quanto mais o perseguiam e o provocavam mais ele se sentia estimulado a produzir, mais seu interesse se aguçava, mais sua criatividade fluía; outra característica sua é que sempre estava numa posição de liderança, sempre cercado por muitos seguidores que o admiravam, que se dedicavam á ele e ao seu trabalho. Ao mesmo tempo, sempre havia pessoas que o detestavam e o perseguiam fazendo tudo para diminuir suas descobertas, quando não, destruir seu trabalho. Isto se repetiu muitas vezes em sua vida e para mim é um reflexo de sua história. Se por um lado foi o filho predileto, amado e cercado de mimos e atenções, por outro lado teve que enfrentar a dor, o desamparo e a solidão da perda prematura de sua mãe. Por tudo isto precisou “ficar adulto” rapidamente e desenvolveu fortes mecanismos de defesa para não sucumbir, não se deixar destruir pela culpa e angústia resultantes de sua tragédia infantil. Aquilo que poderia tê-lo destruído, ao contrário, parece que gerou nele uma força vital e uma determinação á qual ele precisaria recorrer em muitos momentos de sua vida.
Voltemos, outra vez, para sua vida pessoal. O período entre 34 e 37 foi um dos mais felizes de sua vida afetiva. Reich separou-se de Annie quando retornaram para Viena e, quando foi para a Escandinávia, teve uma relação estável com Elsa Lindenberg, uma bailarina alemã que havia conhecido em seus últimos meses em Berlim e com a qual iniciara um romance. Ao que parece a relação com Elsa foi o estopim para a separação de um casamento já há muito deteriorado. Elsa era uma mulher de seus 25 anos, atraente, inteligente e ativista do partido Comunista de Berlin, no qual ela e Reich se conheceram. Alem de terem em comum a atividade política ela admirava muito seu trabalho, apoiava-o e participava escutando-o e dando opiniões, o que para ele era muito importante – ela, no entanto, nunca deixou de se dedicar á sua própria atividade profissional. Foi Elsa quem lhe deu apoio quando, em 34, Reich, chegando ao Congresso Psicanalítico de Lucerna, na Suíça, no qual faria uma apresentação como membro da Sociedade Psicanalítica de Berlin, foi informado de que havia sido expulso desta Sociedade. Como era típico de seu caráter, não se rendeu a isto e, embora tenha se sentido insultado e ficado revoltado, insistiu na apresentação de seu trabalho, mesmo que fosse como convidado. E assim foi!
Reich e Elsa tinham muitos amigos, e mantinham uma vida social bastante ativa. Um único aspecto o angustiava: a distancia de suas filhas, que ficaram morando em Viena e com as quais tinha pouco contato. Quando, mais para o final da década, as campanhas contra si foram aumentando, a pressão foi ficando muito grande e seu equilíbrio interno foi abalado, começou a ficar controlador, ciumento e autoritário com Elsa. A relação, então, foi se deteriorando e rompeu-se após uma irracional e violenta cena de ciúmes protagonizada por Reich. Porém a separação definitiva só se deu quando ele, alguns meses depois foi para os EUA. Mas, ao que tudo indica este foi o grande amor de sua vida e, parece, foi correspondido com a mesma intensidade, com um amor genuíno e profundo. Segundo Sharaf, nenhuma das mulheres que entrevistou, falou de Reich com a ternura, a paixão e a qualidade de amor expressos por Elsa. Quando chegou aos EUA Reich enviou-lhe uma carta na qual a convidava a juntar-se a ele, porem, ela escolheu permanecer na Europa.
Ao que parece Reich não tinha aptidão para viver sem uma companhia feminina e, não tardou a ter uma outra companheira quando chegou à América. Em Outubro conhece Ilse Ollendorff e dois meses depois vão morar juntos. E o início de uma relação afetiva e de companheirismo profissional que dura até 1953, quando o casal se separa – em 55 Reich tem uma outra companheira chamada Aurora Karrer, com a qual fica junto até sua morte. Diferente de suas duas mulheres anteriores, Ilse tinha como centro de sua vida profissional o trabalho de Reich. Ajudava-o em suas pesquisas, e também era responsável pelas questões administrativas e financeiras. Um dos acontecimentos mais felizes da vida de Reich, neste período, foi o nascimento de seu filho Peter, em Abril de 44 e é com grande alegria que acompanha seu desenvolvimento. Também volta a ver suas filhas, que haviam emigrado para a América, em 38. Principalmente Eva, com quem sempre teve uma relação mais próxima.
Sua vida pessoal nos EUA foi muito diferente de seu período feliz na Escandinávia. Sentia-se incompreendido, suas explosões eram mais freqüentes, tornou-se menos sociável, vivia mais isolado e dedicava-se com afinco e exclusivamente ao trabalho. Parece que as adversidades que tivera que enfrentar começava a cobrar seu preço, mas o pior ainda estava por vir.
Reich mudou-se para os EUA ajudado por Theodore Wolfe, um psiquiatra suíço, que morava nos EUA e que foi para a Noruega estudar e fazer terapia com ele; Wolfe seguiu sendo seu colaborador até o início dos anos 50 quando os dois se desentenderam. Não foi o primeiro nem o único a se deslocar de tão grande distancia para se tratar e aprender com Reich e, como muitos outros, antes e depois dele, afirmava que sua vida recomeçou a partir da terapia com Reich (Sharaf).
Quando Reich chegou aos EUA a psicoterapia não era o lado profissional que mais o interessava. Embora fosse muito procurado e continuasse atendendo pacientes, seu interesse se concentrava mais na pesquisa com os bions sapa. Através das repetidas experiências ficou evidente que a radiação provocava uma diminuição e, em alguns casos, o completo desaparecimento dos tumores nos ratos. Ficou evidente, também, que o tratamento com a radiação tinha um efeito mais efetivo do que o tratamento feito com injeções de bions sapa.
Chegando a esta conclusão, Reich tratou de desenvolver um aparato muito simples, uma caixa feita com metal, lã de vidro e madeira, ao qual chamou de acumulador de orgonio. Colocava os ratos com tumor dentro da caixa, por alguns minutos, todos os dias e observou que os tumores, em sua maioria, iam desaparecendo. Orgonio, é um neologismo que Reich criou para dar nome a esta energia, que mais tarde ele veio a compreender ser a energia presente no organismo, na atmosfera, em todos os seres orgânicos e inorgânicos, ou seja, é a energia cósmica primordial, presente em tudo que existe. Reich, diante de sua evidencia, queria comprová-la cientificamente e não podemos dizer que obteve completo sucesso no que diz respeito a este propósito, mas, produziu efeitos testáveis, como a dissolução de tumores cancerígenos. Citando Sharaf: “foi preciso muita autoconfiança e coragem para acreditar que poderia tratar uma doença terrível como o câncer, com um aparato tão simples.” Mas curas aconteceram, em ratos e em pessoas, isto é inegável! Para mim fica uma pergunta: porque isto não foi levado a sério?
Para Reich o câncer era uma biopatia, ou seja, uma doença resultante de um distúrbio crônico da pulsação biológica. Ocorria quando havia uma forte retração interna, intenso encolhimento, resignação. O acumulador de orgonio era uma terapia expansiva. A carga de orgonio nos tecidos promovia a regeneração natural, ativando as defesas auto-imunológicas. Percebeu que o acumulador funcionava melhor em quem tinha mais movimento energético no organismo, daí compreendeu que havia uma interação entre os dois campos de energia: o do organismo e o do acumulador. Começou a usar o acumulador com pessoas em Maio de 41, e utilizou-o com sucesso também em outras enfermidades como doenças cardíacas, do sangue e da pele, só para citar algumas.
Houve muita controvérsia quanto ao uso e á eficácia dos acumuladores. Reich foi acusado de charlatanismo, pois alguns pesquisadores não encontravam o mesmo resultado que ele. Outra vez, como na Escandinávia, Reich afirmava que estes pesquisadores não seguiam os procedimentos corretamente. Quem estava com a razão? O fato é que em 1947, a partir de dois artigos publicados na imprensa, onde o trabalho de Reich era apresentado de forma deturpada, iniciou-se uma campanha contra ele. Sofreu vários ataques em jornais e, inclusive, da Associação Psiquiátrica Americana e da Associação de Médicos Norte Americana. Foi chamado de esquizofrênico e acusado de “estar impedindo que pacientes com câncer recebessem tratamento apropriado colocando-os numa caixa cujo propósito era ativar a masturbação”. Este tipo de comentário, no mínimo leviano, nos dá uma idéia daquilo que Reich teve de enfrentar e do tipo de pessoas que estavam por trás destas acusações. Mas esta história vai ficar para depois porque gostaria de continuar falando dos desenvolvimentos posteriores de sua pesquisa.
No início da década de 50 seu interesse voltou-se para o estudo dos efeitos do orgonio sobre a radioatividade. Com a explosão da bomba atômica, em Agosto de 45, e suas conseqüências nefastas Reich começou a pensar que o orgonio, com seu potencial curador poderia funcionar como um antídoto ou, ao menos, melhorar os distúrbios associados aos efeitos da radiação. A este projeto chamou de ORANUR – uma abreviação de energia orgone versus energia nuclear, no inglês. Através do Centro de Energia Atômica, conseguiu pequena porção de rádio para iniciar sua nova pesquisa. A idéia era, como fizera em sua pesquisa com o câncer, tratar ratos contaminados pelo material radioativo com o acumulador de orgonio. Porem, antes destes procedimentos colocou material radioativo no acumulador e o contato deste com o orgonio potencializou a radioatividade de tal maneira que seus efeitos foram devastadores. Apesar de todas as precauções tomadas, para a proteção das pessoas, quem trabalhava no projeto sofreu fortes reações físicas e emocionais. Apresentaram náuseas, dores de cabeça, perda de equilíbrio, inflamação da pele e, alguns, tiveram o recrudescimento de alguma doença anterior. Emocionalmente, o principal efeito foi o de intensificar as características negativas da personalidade das pessoas. O próprio Reich, a partir daí, tornou-se muito mais explosivo, tirânico e paranóico. Começou a apresentar idéias de perseguição: inicialmente achou que havia uma conspiração dos comunistas contra ele e que os bolcheviques queriam destruir seu trabalho; depois que a conspiração era interplanetária e não só contra ele, mas que seres de outro planeta queriam destruir o mundo. Se por um lado tinha estas idéias delirantes, por outro, mantinha uma lucidez fantástica no que dizia respeito ao seu trabalho, suas pesquisas e seus escritos. Tanto que, já sob os efeitos de ORANUR, no final da década de 40, criou um centro – Orgonomic Infant Research Center (OIRC), com o objetivo de pesquisar e treinar pessoas para trabalhar com gestantes e crianças na perspectiva da orgonomia. Com médicos, psicólogos, enfermeiros, educadores e assistentes sociais, forma uma equipe para acompanhar a gestação e o desenvolvimento da criança até a adolescência. Acreditava que proporcionando os cuidados para uma gestação saudável e um nascimento natural; fazendo grupos de acompanhamento com as mães para orientação sobre os cuidados físicos e emocionais com as crianças, poderia prevenir o desenvolvimento da couraça muscular e possibilitar o livre fluir da energia. Sua intenção, como em Berlin no início da década de 30, era fazer um trabalho preventivo e profilático da neurose. Também ensinava que as crianças deveriam se educadas com liberdade, responsabilidade social e sem repressões sexuais. Este trabalho teve influencia no movimento progressista da educação, no século passado. Também neste período escreveu sobre a praga emocional e fez pesquisas sobre mudanças climáticas; desenvolveu um aparato, ao qual deu o nome de cloud-busting, e com o qual poderia fazer alterações no clima, chegando a provocar chuvas em uma região onde não havia previsão para tal.
Era impressionante a capacidade que Reich tinha de abrir novas frentes de pesquisa, de realizar tantas produções científicas ao mesmo tempo em que enfrentava, bem ou mal – e muitas vezes mal, como veremos adiante – os ataques ao seu trabalho e todos os conflitos advindos destes ataques. Porem num determinado momento sua paranóia se intensificou e sua lucidez se rompeu. Se isto foi resultado dos efeitos de ORANUR ou da perseguição real que sofreu, ou das duas, nunca saberemos. Uma vez, em 1945, Reich disse: “o primeiro enfrentamento com a irracionalidade humana, foi um choque gigantesco. E incompreensível que eu tenha sobrevivido a ele, sem ficar mentalmente doente”(Sharaf). Creio que se referia a sua tragédia infantil, como creio, também, que os instrumentos que encontrou para sobreviver a ela utilizou-os em todos os outros enfrentamentos pelos quais passou ao longo de sua vida. Mas todo ser humano tem seu ponto de fissão, onde sua integridade psíquica não mais pode ser mantida. O de Reich foi a campanha da F.D.A. .- Food and Drugs Administration, instituição do governo americano responsável pelo controle de alimentos, drogas e cosméticos.
Em 47 a F.D.A, a partir dos artigos acima citados, começou uma investigação sobre o trabalho de Reich, que durou seis anos e que, por um período, foi sigilosa. Iniciou já repleta de idéias pré-concebidas, tais como: “aquilo é um negócio escuso com sexo estranhamente ligado a uma caixa”. Ou ainda: “é alguma coisa pornográfica”. Aqui, de novo, temos a dimensão do quanto o pensamento de Reich era avançado para a época.
Esta distorção, associada à idéia de que ele estava sendo charlatão com relação á cura do câncer – por usar o acumulador de orgonio – resultou numa intimação contra ele e a Fundação Wilhelm Reich, em 1954. A acusação era de violação da lei por fazer uso de um tratamento não comprovado cientificamente e não autorizado pela F.D.A. Reich não compareceu a audiência para a qual foi intimado. Compreendeu que seria suficiente enviar uma carta ao juiz, explicando seus procedimentos, a veracidade e os benefícios de seu trabalho. O juiz considerou que sua ausência ao tribunal estava fora dos tramites legais e o julgamento correu á revelia. Seu resultando foi: proibição da venda e aluguel dos acumuladores de orgonio; recolhimento dos que estavam em uso; recolhimento dos 10 livros publicados por Reich, embora só um tratasse do acumulador; destruição de um panfleto sobre o acumulador e de 35 edições de revistas editadas pelo Instituto Orgone, nas quais havia cerca de 150 artigos de diversos autores e sobre diversos temas. Como pudemos observar por algumas passagens de sua vida, Reich não se curvava facilmente diante daquilo que ele considerava injustiça, e esta sentença não foi justa. O fato é que ele não acatou a proibição na íntegra e em Março de 56 é outra vez intimado sob a acusação de haver violado o mandado anterior.
O julgamento foi marcado para Abril de 56 e Reich, mais uma vez, não compareceu. No dia seguinte foi preso; dois dias depois foi libertado sob fiança, no mesmo dia em que começou o segundo julgamento. Ele escolheu ser seu próprio advogado e baseou sua defesa na inconstitucionalidade do mandado, quando a questão posta em julgamento era, seu cumprimento, ou não. E, claro que, no estado emocional em que se encontrava, não podia fazer uma defesa muito coerente. Ao final ele foi condenado a dois anos de prisão e a Fundação a pagar uma multa de U$ 10.000. Reich apelou da sentença até a suprema corte, mas perdeu em todas as instancias e finalmente em 12.03.57 é levado para uma prisão federal. Doze dias depois faria 60 anos, quarenta dos quais dedicados á ciência.
Na prisão foi examinado por um jovem psiquiatra que, ironia do destino, havia estudado sua obra dos anos 20 e era seu admirador. Recebeu o diagnóstico de paranóia com ilusão de grandeza. Por esta razão, foi transferido para uma outra penitenciaria onde poderia receber melhor tratamento psiquiátrico. Nesta, os médicos que o examinaram concluíram que seu estado psicótico se devia a uma situação de intensa pressão emocional.
Receberia liberdade condicional em 11 de Novembro, após o cumprimento de um terço de sua pena. Tinha o desejo e a esperança de continuar seu trabalho de pesquisa, como confidenciou a seu filho Peter, em uma de suas visitas. Mas a morte chegou antes, no dia 03.11.57, ás 7hs da manhã, foi encontrado morto por um guarda penitenciário.
Morreu dormindo, de ataque cardíaco. Só, mas não como um cão, pois teve a dignidade de lutar pelo que acreditava e não teve medo de levar esta luta ás últimas conseqüências, deixando para a humanidade um legado como poucos antes dele, haviam deixado.
Tânia Alda Buarque da Silva
BIBLIOGRAFIA
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SHARAF, Myron R. Fury on earth: a biography of Wilhelm Reich. New York, Da Capo Press, 1994.