Este artigo é uma síntese das reflexões com relação às transformações da minha atuação na clínica psicocorporal nos últimos 30 anos.
Proponho pensar o sujeito contemporâneo e no contemporâneo, a potência dos encontros, a diversidade de ser e estar no mundo e as transformações que emergem de tudo isto.
Sabemos que na vida não existem garantias para nada.
Somos a todo instante pressionados pelo aumento das desigualdades, pela competição, pelo desemprego, pelo excesso de informação, pela fragilização das relações e não é de se estranhar que a angústia atinja níveis exacerbantes.
Vivemos dentro de uma velocidade super acelerada que torna tudo e todos obsoletos e encurta o prazo de validade das formas em uso. Alguns acreditam na “virtude do lucro” dizendo, por exemplo, que “a autêntica virtude, agora” é fazer algo em menos tempo que os demais. Esta contingência nos torna escravos do tempo e uma das conseqüências é o esgotamento em diferentes nuances, tanto no nível físico quanto psíquico.
A vida passa assim a ser sentida e vivida como um grande vazio a ser preenchido, acarretando uma busca incessante e ilusória de um objeto que viria completá-la. Muitos ainda acreditam que o reconhecimento só vem pelo sucesso, dinheiro, poder.
A consequência disto tudo é um estado crônico de tensão, exacerbação, compulsão, até chegar ao desânimo, devido ao nosso aprisionamento nestas ilusões.
O objetivo do viver passou então a ser preencher, completar o vazio, as faltas. Isto nos leva ao hiper consumo e se não conseguimos fazer parte deste consumo exacerbado nos sentimos deprimidos, à parte do mundo, incompetentes, incapazes.
Outros se sentem humilhados, violentados, descompensados, sem vontade de viver e sem projetos individuais e/ou coletivos.
Quando se dão conta, percebem que foram pegos, capturados, aprisionados, por forças pelas quais não tiveram acesso.
Como sair do aprisionamento, do esgotamento e deste modo de funcionamento?….
Como simplificar a vida?….
Como se abrir e se transformar?….
Alguns têm consciência desta condição. Outros não a percebem, embora pessoas mais próximas verifiquem o imenso sofrimento aí presente. Sofrimento este que aumenta na medida em que não se encontram recursos paracompreender, refletir e buscar possibilidades de saída para transformar o alto nível de exigências, dúvidas, aprisionamento e tensão.
A psicoterapia vem como uma das possibilidades de resposta e enfrentamento a estas situações contemporâneas.
Sabemos que a psicoterapia é um campo do saber cujo objeto de estudo é o homem e o seu modo de existir no mundo.
Dentre as diversas abordagens que dispomos atualmente para compreender e trabalhar o ser humano, uma delas é a psicoterapia corporal.O homem ao longo da sua história (desde Sócrates) foi separando o corpo da mente principalmente porque via o corpo como sede dos vícios, das doenças e do sofrimento.
Há mais ou menos 150 anos o homem vem resgatando a importância do corpo. No campo das psicoterapias, Wilhelm Reich representa um marco importante na área da corporeidade, porque foi ele o precursor do trabalho com o corpo, o teórico que introduziu o trabalho corporal na psicanálise.
Wilhelm Reich (1897 – 1957) nasceu na Galícia, (uma parte da Áustria Germano – Ucraniana) e pertencia a uma família judia de classe média.Em 1918 ingressou na escola médica na Universidade de Viena, mostrou-se sempre um estudante excepcional, capaz de aprender de uma forma rápida, meticulosa e sistematicamente. Também vivia absorvido pelo desejo de enfrentar de modo contundente os questionamentos científicos e filosóficos de sua época.
Quando começou sua prática clinica em 1919, Reich viu que junto com a palavra, o corpo guardava a sensação descrita verbalmente, e que era uma dimensão que podia ser incluída no trabalho psicoterapêutico. Dizia que: “Qualquer distúrbio da capacidade de sentir plenamente o próprio corpo corroe a confiança em si, como também a unidade do sentimento corporal”.
Segundo Reich os seres humanos trazem em sua musculatura a história da própria vida, que está inscrita no corpo, lembrando que por trás de cada contração crônica estão os traumas, as dores vivenciadas ao longo da nossa existência, mesmo que não percebidos no momento atual.
A psicoterapia corporal trabalha integrando o nível simbólico, isto é, como estão registrados na memória os fatos, acontecimentos que já vivemos e a importância emocional dos mesmos, juntamente com a leitura corporal de como a pessoa relata e sente a sua história. Compreende assim o ser e seus problemas emocionais em termos da dinâmica energética do corpo, integrando-os com o socius, em que se encontra inserida.
Temos atualmente várias escolas neo e pós reichianas e o que une todas elas é o conceito de pulsação da energia.
Dr Alexander Lowen (1910 – 2008) é um dos mais importantes representantes/ícones da primeira geração neo-reichiana. É o criador da análise bioenergética. Foi aluno de Reich de 1940 a 1952 e seu paciente de 1942 a 1945.
Lowendiz:“Você é seu corpo e seu corpo é você”. Seu corpo expressa quem você é, sua forma de ser e estar no mundo. Quanto mais vivo for o seu corpo mais vivamente você estará no mundo. Ele concorda com a visão reichiana do funcionalismo unitário, isto é corpo e mente são funcionalmente idênticos, ou seja, o que acontece na mente acontece no corpo e vice-versa.
Lowen afirma que o indivíduo que:
– não respira plenamente reduz a vida do seu corpo,
– se não se movimenta livremente limita a vida do seu corpo,
– se não se sente inteiramente estreita a vida do seu corpo e,
– se sua auto expressão é reduzida o indivíduo terá a vida do seu corpo restringida.
Para nós do campo reichiano e analistas bioenergéticos não existem hierarquia entre mente/corpo, pois ambos exprimem cada um a seu modo a força da vida. E é este o nosso referencial teórico, a aposta de trabalho.
Reich nos deixou uma ciência dos corpos, das emoções, dos afetos que se sustenta em uma ética libertária.
Mostrou que o caráter e postura corporal são expressões unificadas de um mesmo metabolismoenergético básico. Mas o que vem a ser o caráter?
O caráter representa o comportamento habitual, o padrão típico do comportamento, o modo peculiar de responder às situações da vida. Neste sentido o caráter não é outra coisa que a história que está congelada, estruturada no corpo.
Uma tensão muscular/caracterológica é construída/produzida para evitar a expressão de um movimento ou afeto e a consequência disto é que estas tensões tornam-se crônicas.
Poucas são as pessoas na nossa cultura isentas de tensões, sendo que estas tensões tornam-se responsáveis pela estrutura de nossas respostas e pela definição dos papéis que desempenhamos na vida. Estes padrões tensionais refletem os traumas vividos durante o crescimento, todas as rejeições,privações, seduções, supressões e frustrações. Cada um de nós passou por estes sofrimentos em intensidades diferentes.
Para Lowen, trabalhar com as tensões musculares exclusivamente, sem a análise das defesas psíquicas e sem a evocação dos sentimentos reprimidos, não compõe um processo psicoterapêutico.
Na análise bioenergética, não abordamos os pacientes como exemplares deste ou daquele tipo de caráter. Nós os vemos como indivíduos peculiares cuja busca de prazer é obstruída pela ansiedade contra a qual montou um sistema defensivo todo seu. A psicoterapia possibilita o paciente a encarar sua problemática mais profunda e se soltar das amarras impostas pelas experiências do seucrescimento/desenvolvimento, isto é, que se liberte do que o coage/pressiona por dentro e por fora para assim torna-se responsável e comprometido com a sua vida, seu viver, seu mundo.
O processo psicoterapêutico em toda sua amplitude instrumentaliza as pessoas e assim possibilita-as a reinventarem e reescreverem a sua própria história.
A vida contemporânea nos coloca diferentes e novas interrogações e desafios. Observamos os mais diversos sintomas, desde a depressão, o pânico, a anorexia, a bulimia, o burn out, as compulsões, a drogadicção, o TOC.
É imprescindível que encontremos brechas para escapar dos aprisionamentos e imobilismos, pois só assim deixaremos de ser escravos e regidos pelo medo.
Nesta outra forma de funcionar podemos ter espaço para realizar e compartilhar ao retomar a condição de afetar e ser afetado pelas forças do mundo.
Para tanto precisamos também buscar conexões com outras áreas do conhecimento como a filosofia, a história, a arte, sem receio de perdermos nossas especificidades enquanto psicoterapeutas corporais. Temos também que estar atentos para não cairmos na armadilha de reduzir toda a complexa problemática contemporânea a um problema unicamente pessoal, individual, considerando, no entanto a singularidade que nos é inerente.
Nossa escolha e nossa aposta é trabalhar no resgate da pulsação da vida e ajudar as pessoas, onde quer que elas estejam a encontrarem seu próprio caminho. Podemos falar que o processo psicoterapêutico implica no desenvolvimento de um projeto vital de autonomia humana, assim ao invés de corpos reativos, impotentes e automatizados corpos ativos e potentes, que experimentam e agem sobre o mundo, inventando respostas e outras formas de vida.
Ana Lúcia Faria