APLICAÇÃO DA ANÁLISE BIOENERGÉTICA EM POPULAÇÕES FINANCEIRAMENTE DESFAVORECIDAS – UMA REFLEXÃO PARA O COMPROMISSO SOCIAL
Périsson Dantas do Nascimento
Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo – IABSP
REFERENCIAIS TEÓRICOS
Esse trabalho tem como objetivo socializar a experiência do autor em trabalhos comunitários com populações de baixa renda, utilizando aportes da Sociologia Clínica e da Análise Bioenergética como sustentação teórica e metodológica para e a escuta e intervenção em grupos, os quais não teriam acesso a clínica particular dos consultórios.
Estamos em um mundo no qual os avanços científicos, nas mais diversas áreas, são realmente surpreendentes. Novas tecnologias surgem, a princípio, a serviço do conforto e do bem-estar do homem contemporâneo, propiciando e facilitando a realização de tarefas diversas (desde as domésticas até as industriais) diminuindo consideravelmente grandes esforços humanos no tocante ao trabalho e a produção de sua subsistência. Estão sendo desenvolvidos tratamentos que combatem, retardam e/ou levam à cura de doenças antes consideradas irrecuperáveis. Conhecimento e informação estão sendo divulgados, processados e produzidos em grande escala, em uma grande rapidez, propiciados pelos contínuos avanços na informática. A produção de alimentos está gradativamente crescendo em qualidade e quantidade, por meio do investimento na pesquisa genética e agropecuária. Enfim, a ciência encontra-se presente na vida humana produzindo sem cessar novas descobertas e investidas tecnológicas, vistas e divulgadas como progressos, avanços para proporcionar uma melhor qualidade de vida para o homem, seja no âmbito individual, seja coletivo.
Entretanto, nesse mesmo mundo, nunca se presenciou tanta miséria, desigualdade social, violência, intolerâncias religiosas, guerras. O ser humano, que investiga a cura de doenças e transforma significativamente a natureza é a única espécie que dizima a si mesma e ao ambiente a sua volta (Chiavenato, 1990, Capra, 1996). Os cientistas e pesquisadores que hoje propagam a necessidade premente de se estar atualizado com os avanços na tecnologia de informação via internet, não divulgam quantas milhares de pessoas foram sacrificadas em decorrência de comunicações entre computadores de bases militares, que serviram como primeiras tentativas de utilização da rede de computadores. Também não se discute a quem serve toda a tecnologia que é produzida e posta no mercado como necessidade, despertando o desejo consumista de possuir o produto cada vez mais atualizado e moderno (Gaulejac, 2001; Lipovetsky, 2007; Bauman, 2007). O acesso aos avanços científicos, em primeira instância, está vinculado ao poder financeiro de determinadas camadas sociais, que possuem condições, em primeira mão, de adquirir, financiar e consumir os produtos de anos de pesquisa científica.
Conflitos, contradições, paradoxos. Tais condições estão refletidas no cotidiano de cada habitante de nossa sociedade, nas mais diversas formas e manifestações: violência familiar, desemprego, drogas, degradação da natureza, crescimento da criminalidade e violência urbana, como também dos índices de pobreza e fome em todo o mundo, concomitante a uma concentração maior de riqueza nas mãos de uma parcela gradativamente menor de pessoas (Takeuti, 1993; Giddens, 1994). Em termos psicológicos, observamos o crescimento, nos consultórios, de pessoas queixando-se de sintomas depressivos, baixa auto-estima e o crescente aumento da incidência de suicídios (Dutra, 1996; Takeuti, 2002). A desilusão em não poder ter acesso às necessidades que o mercado impõe continuamente, assim como a angústia em ter que se adaptar rápida e continuamente a um mercado de trabalho extremamente injusto e competitivo são algumas entre inúmeras situações nas quais nos confrontamos vivendo em uma sociedade pós-moderna, neoliberal, cujas transformações deixam nos indivíduos uma sensação de vazio, incerteza, medo, instabilidade frente aos valores, ao futuro e às perspectivas de melhoria das condições de vida (Ianni, 1997).
Nesse momento histórico, a psicologia tem sido bastante solicitada, visada. Em uma sociedade onde predomina a injustiça, o mal-estar, a dificuldade de encontrar e produzir um sentido de vida, demanda-se do psicólogo respostas para diversos tipos de questões, referentes às situações problemáticas que os indivíduos ou grupos podem defrontar-se no cotidiano. É interessante notar, como freqüentemente observamos na mídia local (escrita e televisiva), a presença cativa de um profissional psicólogo como “especialista”, suposto detentor de um determinado saber que denota o poder de indicar o “como fazer”, a verdade de como atuar nas mais diversas questões. As pessoas têm sede de respostas, assim como a mídia. No entanto, percebemos o imediatismo, o determinismo na forma das perguntas e das respostas que se esperam do profissional. É o conhecimento psicológico transformado em um “fast food”, pronto para ser engolido sem ser mastigado, discutido, problematizado num processo de reflexão e diálogo. Observa-se também esse fenômeno na prática clínica, quando pessoas, muitas vezes bastante alienadas de sua experiência e de sua condição de sujeito social, contam seus problemas e dilemas existenciais, sociais, familiares e exigem dos seus terapeutas uma resposta, uma solução imediata para os seus transtornos e sofrimentos.
No âmbito desse contexto sócio-cultural no qual o ser humano pós-moderno vive, um mundo imagético, visual, no qual o exercício reflexivo de pensamento e crítica do real é substituído pela velocidade e transmissão televisiva de imagens e informações, a psicologia também contribuiu para servir como “consultora” de verdades sobre as questões humanas. Enquanto ciência, o saber psicológico ocupou um status de legitimidade e confiabilidade de seus construtos teóricos, investigando os fenômenos individuais sob a ótica metodológica das ciências consideradas “naturais”, na tentativa de constituir-se enquanto um corpus de saber generalizante, verificável e observável objetivamente, pressupostos de uma tendência epistemológica herdada do pensamento empirista/mecanicista/atomista de conceber a natureza e as relações sociais (Figueiredo, 1996/1997; Japiassu, 1998). Os diversos construtos da psicologia experimental e posteriormente behaviorista, que pesquisavam em seres humanos leis gerais de percepção, cognição, pensamento, motivação enquanto objetos de estudo, buscavam elaborar leis nomotéticas e quantificáveis, em termos de esquemas e testes psicométricos, padronizados. Tais estudos problematizavam a questão da relação do indivíduo com a sociedade e tinham uma intenção de aplicabilidade na intervenção, categorização e melhoria de condições adaptativas para sujeitos que se encontravam em escolas, empresas, famílias, ou instituições diversas. É interessante notar como a psicologia social, em suas primeiras pesquisas, estudava as relações entre individuo e sociedade como um conjunto de vetores e influências, no qual o pesquisador/cientista estava voltado para o estudo dos fenômenos e leis que regiam os comportamentos predizíveis, observáveis e mensuráveis dos indivíduos, isoladamente ou em grupo. Fatores como atitudes, percepções, cognição social e processos grupais eram observados sob a ótica de “coisas”, ou “variáveis”, isto é, objetos de estudo submetidos à investigação natural.
Contudo, a vertente clínica de atuação psicológica, de influência predominantemente inspirada no modelo médico (baseada no diagnóstico, prognóstico e tratamento) desde os tempos de Freud tem sido um dos campos de trabalho privilegiado desse profissional (Yamamoto, 1996). Em diversas correntes que norteiam a ação terapêutica dos psicólogos está a ênfase nos recursos e nas representações individuais, tendo como função um despertar, por meio da relação cliente/terapeuta, das potencialidades, capacidades para um melhor viver no mundo em sociedade, de maneira criativa. Essas idéias remetem a uma vertente humanista e romântica nas matrizes de pensamento psicológico (Figueiredo, 1995), que enfatizam o respeito às peculiaridades da experiência e das condições favoráveis para o desenvolvimento de uma personalidade flexível, saudável, criativa. Há um repúdio às tentativas de manipulação e controle do comportamento, divulgadas pelos psicólogos behavioristas, privilegiando um discurso de centramento no potencial positivo da humanidade, da ampliação da consciência individual e em grupos de encontro, nos quais o respeito, a aceitação, a empatia e a experiência no presente consistiam pressupostos básicos para o crescimento pessoal.
Questões como a má distribuição de renda, o desemprego estrutural, a crescente miséria e violência configuram um quadro de exclusão social preocupante nos dias de hoje, principalmente nos países em desenvolvimento como o Brasil. O trabalho com ONGs, OCIPs e a realização de projetos e parcerias com instituições privadas tem se tornado um caminho possível para o profissional/terapeuta inserir-se em uma realidade na qual o sofrimento psíquico agrava-se com a falta de perspectivas, em uma sociedade que proporciona poucas oportunidades de configurar estratégias de constituição saudável do eu.
Direcionando essa discussão para o campo específico das psicoterapias corporais, temos em Reich o nosso principal inspirador e pioneiro na inquietação continuada em realizar um trabalho de aplicação da escuta e intervenção clínicas em prol de uma transformação social (Boadella, 2000). Em diversas obras, Reich (1994; 1996; 1998) reflete sobre a inter-relação existente entre a estrutura social existente na luta de classes e na geração do sofrimento psíquico decorrente das injustiças e da repressão imposta pelas classes dominantes com a dominação do corpo, da sexualidade, da educação moral disciplinadora e inibidora dos impulsos sexuais e afetivos saudáveis no ser humano. A peste emocional gerada socialmente reflete uma atitude narcísica de indiferença quanto à coletividade e a saúde do planeta, de perpetuação da violência, da repressão da liberdade de expressão e livre-arbítrio, configurando um circuito energético que propicia a barbárie e o desenvolvimento de padrões caracteriais defensivos nas relações humanas. Serrano (2004) nos aponta a necessidade de criarmos um espaço de sensibilização para uma ecologia global, ou seja, uma atuação psicocorporal e energética que possa ampliar os limites do atendimento individual realizado em consultórios particulares. A intenção ecológica no contemporâneo volta-se para uma práxis que privilegie iniciativas coletivas de discussão e intervenção sobre grupos, comunidades, instituições, potencializando o espaço de ação do psicoterapeuta reichiano para a ampliação da consciência crítica das pessoas, numa constante inter-relação entre o individual, o social e o ambiental, sempre considerando uma leitura energética dos fenômenos, convocando-nos para retomar a inquietação reichiana de revolução político-sexual.
A Análise Bioenergética encontra-se atualmente muito sensível a esses questionamentos, tendo em vista o último número da Revista Análise Bioenergética que contém diversos artigos questionando sobre o lugar dessa abordagem no mundo contemporâneo, com suas demandas, inquietudes, desigualdades e violências. A necessidade de compromisso social do analista bioenergético surge como uma importante tarefa a ser discutida e construída, no que diz respeito a socialização de um fazer clínico que foi primordialmente desenvolvido no atendimento individualizado e em grupo e nos programas de formação. Hilton (2006) aponta para a urgência do IIBA se posicionar, enquanto instituição formadora e construtora de conhecimento, num engajamento mais amplo, que os terapeutas bioenergéticos possam se lançar para a reflexão e possibilidades éticas para um retorno, ainda que menos idealista e grandioso, às intenções revolucionárias do Reich.
Temos o intuito, nesse Congresso, de apresentar experiências possíveis de clínica ampliada e intervenção diversas que foram realizadas nos anos de 2001 a 2006, atendendo grupos de crianças em orfanatos, adolescentes de bairros periféricos, idosos em asilos, casas de proteção a garotas em situação de risco de prostituição, abrigos de portadores de HIV, além do atendimento clínico individual em serviços públicos de saúde, como unidades básicas e hospitais. Utilizamos uma metodologia de pesquisa participante, na qual realizamos um diagnóstico das demandas, uma escuta das principais dificuldades dos clientes e aplicamos estratégias em que a Análise Bioenergética entra como eixo central de trabalho, respeitando sempre a condição energética e caracterial principal de cada indivíduo, como também do grupo, conforme reflexões lançadas por Volpi e Volpi (2001) e Alves e Correia (2004).
A presença do pesquisador/clínico, evocando discursos, representações, sentimentos, vozes muitas vezes nunca ouvidas e refletidas pelos sujeitos participantes, leva, por si só, à possibilidade de uma ressignificação, um ato de refletir, reconstruir suas idéias sobre determinada temática, tornando o contexto de pesquisa uma situação próxima a uma intervenção clínica, na atitude de escuta. Essa afirmativa justifica-se, pois por meio da relação de entrevista, muitas vezes o sujeito/participante da pesquisa questiona, no esforço de expressar suas idéias, a sua concepção de mundo, numa atitude auto-reflexiva que pode levar a transformações subjetivas (Lévy, 2001).
Dessa forma, criamos espaços de autoconhecimento e auto-percepção, onde os participantes atendidos saem gradativamente de uma condição esquizóide de desestruturação interna, como também de uma oralidade expressa nas demandas assistencialistas, para uma reflexão para o agir, para a transformação de sua realidade social e coletiva, criando um novo ciclo energético de auto-sustentação e grounding.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AUTOR DO TRABALHO:
Périsson Dantas do Nascimento
E-MAIL: perisson@hotmail.com
INSTITUIÇÃO: Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo – IABSP.