«A mente afeta o corpo e o corpo afeta a mente » Hipócrates
Georg Groddeck (1866-1934), médico alemão, que, seguindo a tradição hipocrática, estruturou seu trabalho no doente e não na doença. Desenvolveu as bases do trabalho psicos-somático e paralelo ao desenvovimento da Psicanálise pro Freud, criou uma linha analítica baseada nas doenças. Em sua perspectiva, via a doença como uma linguagem da criança ferida, sendo os sintomas uma mensagem para o adulto, sobre seus traumas e necessidades infantis reprimidas. A doença como uma possibilidade de comunicação da criança com o mundo adul-to, que na infância era representado pelos pais e familiares, e, hoje, pelo adulto que cada pessoa desenvolveu durante a vida. Essa mensagem vem através de sentimentos, dores, atualização de traumas antigos que requerem um cuidado adequado consigo mesmo, necessitando eventualmente grandes mudanças no estilo e qualidade de vida.
Assim como o trabalho de Reich com a análise do caráter, aprofundada por Alexander Lowen, podemos ver como a história infantil vai sendo escrita no corpo e na alma das pessoas. O mundo emocional vai dando forma e significado à vida. Como terapeutas podemos ver, através das manifestações do caráter, a história traumática e possibilitando uma maior compreensão de nossos clientes, e abrindo muitos caminhos para o tratamento.
A individualidade
O desenvolvimento do ser humano, de sua identidade, vai sendo construído por tudo que o afeta em sua vida. A nutrição intrauterina com alimentos adequados ou não, o estado emocional materno refletindo através do sistema hormonal e sistema nervoso autônomo, alterando o tônus da musculatura uterina e sua irrigação. Os desejos e conflitos que cercam a gravidez, assim como o suporte econômico, afetivo da família e do pai da criança. A história relativa aos papéis de pai e mãe na infância dos genitores. A expectativa colocada na criança que virá . A forma como se deu essa fecundação e o amor colocado nessa união. Essa criança vindo como fruto do amor do casal e representando a concretização da relação de ambos, e/ou para preencher carências emocionais de um ou ambos os pais.
Pode-se acrescentar uma quantidade infinita de fatores que envolvem e influenciam o início de uma vida. Tudo sendo registrado em seu corpo e mente, formando a base dos seus referenciais futuros. O que sentimos, pensamos e agimos passa por todos essas memórias que nos marcam conforme a intensidade e frequência que ocorreram.
Cada pessoa tem uma forma diferente de estar neste mundo e nas diversas relações que estabelecemos. Quando encontra-se um papel com um nome e telefone no bolso da pessoa que amamos ocorrerá uma série de associações dentro de nós. Será dado um significado a esse fato. Podemos sentir indiferença, curiosidade, medo ,raiva, desespero, dor, etc…Desses sentimentos desencadeia-se uma série de pensamentos, terminando com alguma forma de ação. Tudo isso cria uma reação no parceiro e no relacionamento, e, consequentemente, uma nova cadeia de sentimentos, pensamentos e ações.
Cada indivíduo tem sua própria maneira de relacionar-se consigo e com os outros. É como ver o mundo com uma lente de diferentes cores, que foca muito determinados fatos e não vê outros. Como a impressão digital tem linhas e sulcos de diferentes formatos que nos diferencia dos outros, também é a nossa maneira de viver. Cada um dentro de um corpo e mente fruto de histórias e vivências particulares, tentando fazer contato com outros diferentes universos emocionais, sendo que a maioria acredita falar a mesma língua, ver o mundo da mesma forma e não entendendo o porquê dos desencontros, desilusões, desentendimentos, conflitos e sentimentos de isolamento e solidão. É como um habitante que sempre viveu nos trópicos que discute com um esquimó sobre clima, hábitos alimentares, cultura e a rotina diária, acreditando que o outro tenha o mesmo referencial que ele.
A memória genética
A memória genética contida no DNA é fruto de uma longa história de evolução da vida tentando se adaptar da melhor forma possível neste mundo. O desenvolvimento da nossa raça e espécie é uma das formas que a vida encontrou para seguir. As características específicas dos seres humanos, surgiram de muitas pequenas conquistas e sucessos que foram somando-se no percurso. No estudo do cérebro podemos identificar essa evolução, podendo-se distinguir a parte mais antiga, denominada de reptiliana (tronco cerebral e cerebelo), o sistema límbico (cérebro das emoções) presente nos mamíferos, e o córtex e neocórtex característicos dos humanos.
Quando o espermatozoide encontra-se com o óvulo, determina uma o aparecimento de um novo ser, com 23 pares de cromossomos que herda de seus genitores parte de suas memórias genéticas, que orientará a formação de toda a estrutura corporal. Todas as células serão regidas por esse maestro, formando órgãos, sistemas e o funcionamento harmônico de todo esse conjunto. Esse corpo será também moldado pelo meio que vive, carregando suas conquistas e descobertas consigo para passar às outras gerações. Para isso, conta com um sofisticado sistema de memória e de comunicação.
As memórias adquiridas
O tamanho do cérebro dos primatas está intimamente ligado ao tamanho do grupo social que pertence. Uma das aptidões essenciais para o crescimento do grupo é a comunicação, permitindo uma maior troca de conhecimentos, a identificação dos componentes do grupo, a força do coletivo sobre as ameaças, a organização das funções e dos relacionamentos. Isso deve ter levado à expansão do córtex frontal e da linguagem.
Para o arquivamento de tantas informações era extremamente importante ter uma seleção adequada da importância de cada uma delas. Como saber de animais predadores, alimentos adequados e os venenosos, onde descansar e como relacionar-se dentro de uma hierarquia social. Tais exemplos podem dar uma dimensão da quantidade de funções necessárias para a convivência e sobrevivência do grupo.
Tudo que nos afeta orienta a formação das sinapses e dos caminhos dos estímulos nervosos no cérebro. Desde a formação do cérebro ocorre essa modelagem. Os afetos intrauterinos tem uma grande importância, pois o feto inicia sua preparação para relacionar-se com sua mãe e viver no mundo externo. Através do referencial materno ocorrerá, por exemplo, o ciclo dia-noite, noções de repouso e atividade, reações emocionais maternas sentidas através do sistema nervoso autônomo e hormonal. Quando nascemos, já temos uma grande quantidade de experiências registradas, e, assim, com uma série de recursos já desenvolvidos.
Ao nascermos temos em torno de 200 bilhões de neurônios, com o auge de sua plasticidade na primeira infância. Uma «lei» de sobrevivência do cérebro determina que : se não usar, perde. Conforme nossa evolução as sinapses vão se formando e criando os caminhos dos estímulos. Cada neurônio pode fazer de 1 a 10.000 sinapses. Nesse período estabelecemos um funcionamento peculiar da mente que orientará a forma de estarmos no mundo. Essa é a nossa pedra fundamental. Através das histórias traumáticas organizamos nosso conjunto de mecanismos de defesa, que organizará nossa estratégia de vida, nosso caráter. Esse é a pedra bruta que lapidaremos com a vida, formando novas sinapses a cada insight, a cada aprendizado e a cada vivência que fará parte de nós.
O fator emocional
O colorido emocional é uma grande ferramenta para a memória. No sistema límbico, que é o cérebro das emoções, há dois grandes princípios essenciais para a vida : autopreservação e a preservação da espécie. Cada fato passa por esse referencial, e, dependendo da importância, será «sentido» e memorizado. Diversas áreas do sistema límbico estão envolvidas na memória, como por exemplo:
– Amigdala – memórias traumáticas inconscientes, importantes para a sobrevivência, e, quando acionadas, determinam uma resposta imediata à situação, antes mesmo do fato se tornar consciente.
– Hipocampo – começa a funcionar gradativamente a partir dos 3 anos de idade. É responsável em guardar e evocar as memórias pessoais. Por aqui lembramos de fatos, pessoas, situações, datas, locais e podemos descrever de forma mais clara. Temos então as memórias conscientes.
Por isso temos dificuldade de lembrar fatos da nossa infância.
– Putâmen – memórias procidementais, como patinar, andar de bicicleta, etc…
– Núcleo caudado – instintos, que são memórias geneticamente codificadas, tem aqui a sua origem.
É interessante notar que as vivências determinantes da estruturação do caráter são arquivadas na amígdala cerebral. Este núcleo mantém no inconsciente as histórias traumáticas, e é determinante nas reações emocionais e corporais. Como fator de sobrevivência ele avalia todas as situações que nos envolve e age independente do racional. Essa memória é imprecis mas extremamente poderosa. É por este funcionamento que compreendemos o ditado popular: «Quem foi mordido por cobra tem medo de linguiça». Nossos medos mais primitivos encontram-se escritos aqui. Os traumas da criança ferida são escritos aqui.
O registro emocional no corpo
Quanto ao corpo, a energia produzida pela absorção do oxigênio e dos alimentos, são distribuídas através do sangue para cada célula. O sangue é o portador de Eros, carrega a energia de vida que irá nutrir as diferentes estruturas corporais. Tal distribuição ocorre por controle do sistema nervoso autônomo e hormonal, que são funcionalmente mensageiros do sistema límbico. Do hipotálamo nascem os nervos do simpático e parassimpático, que formam o sistema nervoso autônomo, e também está intimamente relacionado com a hipófise, que é uma sofisticada glândula que orienta o funcionamento de importantes glândulas do corpo, como por exemplo a tireóide, a suprarrenal e as gônadas, além de outros hormônios como o de crescimento, ocitocina, prolactina, luteinizante, entre outros. Estas estruturas regulam a homeostasia e comportamentos motivados, relacionados a fome, sede, sexo, temperatura, distribuição de gordura corporal, etc…
A medida que as diversas partes do corpo são utilizadas em intensidade e freqüência, estimuladas e irrigadas, vai dando contorno e forma. Assim como a história emocional vai moldando a mente, também molda o corpo, pois a distribuição de energia e as ações, são feitas pelo cérebro emocional. As emoções são essenciais para organizar todos os relacionamentos, fazendo com que me aproxime e me afaste de pessoas e situações. Pode-se comparar as emoções com as cores : algumas primárias ( alguns pesquisadores citam-nas como aversão, medo, raiva e amor parental ) e uma infinidade de complexas combinações . As emoções primárias não exigem consciência, podendo fazer com que as pessoas precipitem reações como fugir ou ir ao encontro, sem a mínima consciência, levando a resultados catastróficos em muitas ocasiões.
A doença como linguagem da criança ferida
O corpo precisa estar num equilíbrio para manter a saúde, e ,quando ocorre desequilíbrios, a doença gradualmente vai se instalando. Esses desequilíbrios podem ser vistos progressivamente: energéticos (portanto ligados ao emocional), funcionais e orgânicos. Groddeck captou através da doença a comunicação com a criança. As necessidades infantis não satisfeitas, seus traumas e seus conflitos ficam guardados, pois naquele momento não puderam ser reconhecidos pelos adultos que estavam à sua volta. A expressão adequada dessas necessidades foi alterada, e, ao fecharmos a porta essa energia achará uma forma de sair por janelas, alterando seu percurso e manifestando-se por sentimentos, pensamentos e ações estranhos ao fluxo natural e saudável. O corpo registra a história e expressa os conflitos até que possam ser compreendidos e solucionados da melhor forma possível. Groddeck dizia que a doença é a nossa melhor amiga, pois conta-os tudo que precisamos ouvir e é muito verdadeira em suas mensagens. Pede uma alteração na forma de vida, impõe mudanças radicais na forma doentia que vivemos. A doença é o caminho da saúde, ela nos obriga a mudar, nos mostra uma neces-sidade inconsciente. Faz com que o adulto que hoje desenvolvemos possa estar em contato com nossas reais necessidades e com nosso self. Olhamos para nossos corpos e nosso interior, sentimos a dor do esforço, do uso inadequado do nosso corpo, motivados pela necessidade de sobrevivência e de amor.
A doença é o alarme que soa quando nos distanciamos de nós mesmos. Ela nos conecta e nos põe limites adequados. Conta-nos nossos traumas e nossa história. Ao adoecermos temos uma série de reações: de como nos relacionamos com nossas dores, do valor exagerado ou negligente, dos medos associados, da forma como tentamos nos cuidar ou nos livrar desses incômodos, de como nos tratamos, de como buscamos ajuda adequada ou não, de como con-
fiamos em que alguém possa nos compreender e nos ajudar. Cada fator destes descreve fatos de nossa história, trazendo à superfície o emocional infantil e possibilitando compreender como os adultos lidaram com essa criança e com suas dores.
Ao assumirmos nossa própria vida e a responsabilidade por ela, poderemos ser o adulto adequado para a nossa criança. Nossos pais e nossa família fizeram parte do trabalho, e pudemos chegar até aqui. Agora, a responsabilidade compete a nós, de buscar ambientes saudáveis, escolher bons relacionamentos, entender o limite de nossos corpos e respeitá-los, ouvir os avisos do corpo e cuidar da melhor forma possível.
A partir do amor a nós mesmos, podemos fluir o amor ao outro. Respeitando nossa individualidade, respeitamos a do outro. Aceitando, compreendendo e respeitando nossa história e nossa luta, com a força e também nossa fraqueza fruto do caminho percorrido, faremos o mesmo com quem vivemos. A maior riqueza que podemos ter é a de relacionamentos Com a diversidade de estratégias de vida aprendemos também formas novas e interessantes que poderão fazer parte de nós, se nos mantivermos abertos ao novo. Cada encontro e relacionamento é a oportunidade de aprendizado e de ensinamento.
O encontro com nossa criança é a dádiva da doença, e quando pudermos manter esse contato, não precisaremos mais dessa forma de comunicação. Nos devolve a noção de sermos humanos e, ao invés de ficarmos repetindo ininterruptamente a história traumática, assumir a direção de nossas vidas, rever valores e estarmos em nossas pernas caminhando com nossa criança ao lado.
«O adulto que não tem contato com sua criança, tem atitudes infantis»
Georg Groddeck