4 – Título do Trabalho:
ALEGRIA E CORPORALIDADE AFRO-BRASILEIRA
MUNIZ SODRE Ph.D.,
Professor e Presidente dos Cursos de Graduação de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro apresentará o tema «Alegria e Cultura : A Experiência Brasileira» Ele irá aprofundar a afirmativa de Alexander Lowen «a alegria está ligada ao reino das sensações positivas do corpo» a fim de discutir o conceito de alegria por si só e as maneiras como usualmente isto se evidencia na cultura Brasileira. Ele irá considerar os efeitos que parecem ser inerentes a natureza paradoxal da alegria (a essência lógica e irracional, a crueldade, condições necessárias de vida) e mostrará como a alegria se afirma em uma cultura popular e em práticas litúrgicas negras, como resultado de uma cultura que é preponderantemente somática e menos psicológica.
“Esta música é alegre, mas não com uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana. O destino cego pesa sobre ela, sua felicidade é breve, repentina, sem piedade”. Nesta instigante observação de Nietzsche sobre o sentimento diferente evocado pela Carmem, de Bizet, aparece igualmente uma distinção radical entre dois tipos de regime afetivo identificados como “alegria”. A africana é propriamente trágica, no sentido nietzscheano deste termo, que é o de “dizer sim à vida mesmo nos seus problemas mais estranhos e árduos; a vontade de vida regozijando-se de sua inesgotabilidade no sacrifício em que lhe são imolados os seus mais elevados representantes –– a isso que eu chamo dionisíaco, isso foi o que eu intuí como ponte que leva à psicologia do poeta trágico”.
O sacrifício de que fala Nietzsche é a entrega radical do indivíduo à comunidade, a recusa da autopreservação física ou moral diante dos interesses maiores do grupo. Trágica não é a purgação do temor e da compaixão, tal como interpretava Aristóteles as obras dos grandes poetas gregos, mas a experiência poética do sacrifício que leva o indivíduo a ser ele mesmo, num prazer de transformação que inclui o próprio aniquilamento. Uma alegria trágica não exclui o destino e dá-se, para além da consciência, num transbordamento de forças, sem dependências de passado nem futuro, no aqui e agora de uma situação existencialmente excessiva.
A idéia de um transbordamento ou ultrapasse da consciência pelo destino ou por qualquer outra força maior faz-se presente na concepção de alegria, um dos movimentos mais vivos da sensibilidade, para o qual existem em latim termos diferenciados: gaudium, laetitia, alacer. O gáudio refere-se a uma extravasão imediata, mais profana, atinente a um gozo ou um regozijo incitado por um móvel prontamente discernível. Já laetitia (do latim castrense, termo preferido por Espinosa) implica “graça”, isto é, o investimento da consciência pelo dom divino.
Graça, que significa saudação, traduzia na Antiguidade o espanto e a celebração da vida, razão pela qual estavam colocadas as três Graças na entrada da acrópole de Atenas. Alacer, alacris (no latim vulgar, alicer, alecris) são adjetivos semanticamente referidos à liberdade da asa (ala) no céu e à permanência da terra (acer deriva de ager, campo). Alegria é o regime afetivo que propicia ao indivíduo, ainda que preso à gravidade ou à constância da terra (ou seja, as convenções e suas exigências), a experiência do movimento no céu, que é na prática um “desligamento” ou um “desapego”.
Esse desligamento está filologicamente assinalado nas palavras alacer, alacris, que relacionam a terra ao céu. Movendo-se, as nuvens tornam o firmamento claro (hilarus, em latim) que também se pode se traduzir como “jovem”. A hilaridade (que terminaria sancionando o riso) e a jovialidade (palavra derivada do deus Júpiter) caracterizam, por exemplo, aquele instante em que o indivíduo, abrindo-se sensivelmente ao mundo –– o sol que nasce, a água corrente, o ritmo das coisas, um encantamento ––, abole o fluxo do tempo cronológico e, com o corpo livre de qualquer gravidade, experimenta uma sensação intensa de presente, capaz de envolver os sentidos e libertar a consciência de seus entraves imediatos.
Seja calma ou exuberante, a alegria é ao mesmo tempo um “espanto de ser” (Bergson) e uma sanção lúcida da vida tal e qual se manifesta, aqui e agora. Não uma sanção intelectual (não existe um “ideal” da alegria, assim como pode haver o da felicidade) ou apenas espiritual, mas corporal e concretamente ligada ao prazer constitutivo de viver. A alegria não é retrospectiva, mas presente. Um prazer ou bem-estar circunstancial, sim, pode reportar-se ao passado e manifestar-se numa imagem de futuro.
Não a alegria, enquanto gáudio profundo: esta maneira de extravasão afetiva, provocada pela concordância de todos os sentidos –– reconhecível pelos sentimentos de júbilo, regozijo, gozo –– surge de uma temporalidade própria, diferente da cronológica, como na celebração festiva, quando a alma ganha autonomia e força diante das agruras físicas e mentais. O real não emerge aí da temporalidade abstratamente criada e controlada pelo valor que ordena o mundo do trabalho. Da singularidade das coisas, no aqui e agora do mundo, advém, álacre, a sua presença.
Há algo de permanente ou eterno nessa aparição singularizada do presente, algo como o eterno retorno da vida, cuja aceitação consiste precisamente na alegria. Uma outra condição para isto, como já vimos, é a aceitação do mundo. Tudo redunda numa aprovação livre, incondicional ou irrestrita do real, diz Rosset –– sem a justificativa de uma representação, uma causa ou qualquer motivo abstrato que impressione a consciência. Não que o sentimento de regozijo não possa ser motivado por um objeto ou por uma circunstância. Mas na alegria, como ele justamente observa, o efeito é maior do que a causa, o regozijo não se esgota no objeto ou na circunstância. Ela prescinde de qualquer racionalização, exige tão só a capacidade de sentir, o que não exclui a capacidade de “ver” o real tal e qual se apresenta, numa ação “positiva”.
As noções de “ver” e de “ação positiva” concorrem para o esclarecimento do regime afetivo denominado “alegria”. Para um terapeuta bioenergetista como Lowen, a alegria pertence justamente “ao reino das sensações corporais positivas; não é uma atitude mental. Não se pode decidir ser alegre”. O positivo deve aqui ser entendido, dentro da dualidade constitutiva das sensações e percepções humanas, como uma excitação oposta a uma outra, negativa, de medo ou de culpa. “Quando a excitação prazerosa aumenta, a partir da linha de origem de uma sensação boa, a pessoa conhece a alegria. Se a alegria transborda, torna-se êxtase”, diz Lowen. O bioenergetista vai localizar a sensação de alegria (assim como a da tristeza) na barriga: “O envolvimento da barriga tanto na tristeza como na alegria está refletido em expressões como “chorei de doer a barriga” e “ri de doer a barriga”.
Apesar da diferença de vocabulário e de certas nuances de pensamento, o bioenergetista encontra-se nas imediações do ensinamento da Advaita Vedanta de Svâmi Prajnanpad quando assinala que a sensação positiva é o outro termo, opositivo, de uma sensação negativa e quando ambos convergem para o ponto de mostrar que a experiência da não-dualidade não pode ser compreendida intelectualmente, é algo a ser vivido: saber equivale a ser. Na alegria, o “ver” e “ação positiva se entendem como caminhar para a não-dualidade. Implica, portanto, deixar de recusar a realidade tal e qual se mostra, mas tentar chegar à consciência da não-separação.
Corpo e ritual
O que expusemos até aqui não está distante de certas configurações simbólicas que celebram a Arkhé, isto é, a ritualização da origem e do destino, dentro do próprio espaço geográfico em que a sociedade moderna procura implementar a todo custo a lei estrutural de organização do mundo pelo valor econômico, que é o capital. O simbolismo da liturgia e dos mitos permanece, em meio ao império do racionalismo empirista, como uma porta de acesso a imagens primais e a anseios de transcendência.
Claro exemplo desse tipo de configuração simbólica é oferecido pelos cultos afro-brasileiros, que atestam e continuamente confirmam a presença na História nacional de um complexo paradigma civilizatório, diferencialmente distante do paradigma europeu, centrado nos poderes da organização capitalista e da racionalidade sígnica. Na cosmovisão desses cultos, de modo análogo à atitude hindu, colocam-se em primeiro plano o reconhecimento do aqui e agora da existência, as relações interpessoais concretas, a experiência simbólica do mundo, o poder afetivo das palavras e ações, a potência de realização das coisas e a alegria frente ao real.
Inexiste, como bem se sabe, um homogêneo paradigma africano: há quem fale de quarenta e cinco e, mesmo, cinqüenta “Áfricas” diferentes. Entretanto a diversidade das realidades sócio-econômicas e das tradições culturais converge para pontos paradigmáticos comuns, um dos quais é a atitude mística, chamada de “animismo” pelo racionalismo teológico do Ocidente, mas que de fato se trata da experiência do sagrado em sua radicalidade.
Decorre daí a grande importância outorgada ao corpo. O fato de ser o corpo um lugar de inscrições da representação não faz dele objeto inerte de uma posse por palavras. Nós não “temos” simplesmente um corpo, já que “somos” igualmente um corpo. Para além do corpo inerte e do corpo em movimento, há nas culturas tradicionais o “si mesmo” corporal, que consiste na sua potência afetiva de ação, na dimensão tácita, e não-sígnica, de seu funcionamento.
Para além da carne, o corpo e suas representações (portanto, a corporalidade) podem ser concebidos como um território onde se entrecruzam elementos físicos e míticos e se erigem fronteiras e defesas. No interior da diáspora escrava (bantos, iorubas ou nagôs) nas Américas, a presença do paradigma africano é atestado pelo posicionamento do corpo no primeiro plano das cosmovisões negras. A experiência sacra é mais corporal do que intelectual, mais somática do que propriamente psíquica, quando se entende psiquismo como um registro de interioridade não ritualístico.
Na Arkhé, o corpo define-se ritualisticamente, resolvendo a dicotomia entre singular e plural, integrando-se ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direções do olhar, mas também de signos e inflexões microcorporais, que apontam para outras formas perceptivas. O ritual é o lugar próprio à plena expressão e expansão do corpo. Diferentemente da teologia cristã ou da meditação oriental, ele não racionaliza os seus conteúdos, mas constitui, em última análise, o modo de ser reflexivo da comunidade. O ritual é uma forma somática de pensar.
Na ordem da Arkhé, o desejo afirma-se primordialmente como potência (ao invés da falta) de desfrute, gozo e realização. A potência torna possível a atividade e a expansão corporais. Esta é a idéia contida na palavra nagô axé, que dá conta de força e ação, qualidade e estado do corpo e seus poderes de realização. Axé –– noção animista ou fetichista na visão da antropologia ocidental, influenciada pela interpretação reducionista dada por Malinowski ao mana dos melanésios–– é na verdade um potencial de realização apoiado no corpo. Em outros termos, é um princípio bio-simbólico de movimentação energética dos seres (divindades, homens e ancestrais) atinente à força contida em substâncias do reino mineral, vegetal e animal.
A música é parte necessária de toda essa dinâmica. A potência do axé afina-se com a sua energia polissêmica, cujos elementos básicos (melodia, harmonia, ritmo, timbre, tessitura, etc.) produzem matizes e matrizes de som, contempláveis pela imaginação e passíveis de absorção pelo corpo. As imagens sonoras são tanto auditivas quanto táteis. Numa dinâmica regida pelo axé, como é o caso da liturgia afro, a música orienta-se pelas modalidades da execução rítmica, do canto e da dança, em que a tatilidade é fundamental. Se o rito é a expressão corporal e afetiva do mito, o ritmo é um rito suscetível de realimentar a potência existencial do grupo.
Rhýtmos deriva, em grego, de rheim, que significa fluir, escorrer. Trata-se, como diz Benveniste, da “forma no instante em que é assumida pelo movente, móbil, fluida, a forma do que não tem consistência orgânica (…) É a forma improvisada, momentânea, modificável”. Instaurando uma temporalidade diversa da cronológica, o ritmo cria um espaço próprio e suscita um imaginário específico. Isto quer dizer que ritmo não é apenas um artifício técnico no contexto da musicalidade, mas uma configuração simbólica que, conjugada à dança, constitui ela própria um contexto, uma espécie de “lugar”, ou de cenário sinestésico e sinergético, onde ritualisticamente algo acontece.
É do espaço litúrgico que, na cosmovisão afro, advêm os saberes da festa, isto é, os cânticos, os toques percussivos, os gestos e os passos coreográficos de base. Dessa organização rítmica e gestual origina-se uma matriz corporal, que se desterritorializa e viaja, acionada pela alegria. De fato, a comunhão e o júbilo coletivos fazem parte da natureza profunda do culto às divindades.
Um cântico exemplar
Nos cultos afro-brasileiros, os ritos de renovação do axé estão estreitamente associados à experiência da alegria. Isto fica explícito na prática ritual, mas também em aforismos e cânticos, a exemplo de alguns daqueles que celebram o poder feminino nas comunidades de culto (“terreiros”).
Cultuadas e invocadas como ancestrais, as “grandes mães” (Iya) representam personalidades femininas de linhagens e comunidades liturgicamente importantes, razão por que são fortes transmissoras de valores comunitários e do axé imprescindível à continuidade da existência física. São ditas Ialaxé, zeladoras da potência mítica, do poder de realização. No culto, elas se modulam miticamente em divindades genitoras associadas a elementos da natureza (água, lama, etc.) e simbolizadas por pássaro e peixe –– penas e escamas aludem simbolicamente a pedaços do corpo materno, ao poder de gestação.
Por isso, como relata Juana Elbein, “um longo poema, composto de uma série de cantigas, celebra nas comunidades a primeira Ialaxé do mais antigo terreiro da Bahia, Marcelina da Silva, Oba-Tosi, sacerdotisa de Xangô, filha da legendária Ialuso Odanadana, da tradicional linhagem dos Axipá, cujo “oriki” Axipá Borogum Elese Kan Gongo é invocado depois de cinco gerações por seus descendentes e por todos os integrantes dos egbé tradicionais. Essa homenagem se estende a todas as Iya fundadoras e transmissoras da Arkhé nagô. O canto expande seu axé, os vínculos se renovam e renascem”.
Oriki é um cântico de celebração, mas também uma “janela” de memória que se abre sobre o passado coletivo. Aqui nos interessa particularmente o seu início: “Ìyá o bogunde (a guerra trouxe a Mãe),/ Omo Afonja o bogunde (filha de Xangô, que chegou com a guerra)./ E ma be ru já (mas não tema a batalha),/ Iya asa o (Pois a Mãe perdeu o medo)./ Eni ma be “òrìsà (Roguemos aos orixás),/ Aiye b´ode. (Para que a alegria se expanda no mundo”. É também particularmente relevante um outro trecho: “Awa de tere tere (Chegamos e estamos aqui com divertimento)/ Awa de t´ayo (Estamos aqui com muita alegria)”.
Como se percebe, o cântico começa falando da vicissitude da diáspora escrava, em razão das guerras entre os reinos africanos, e a conseqüente chegada à Bahia. Mas ao invés de um discurso lamentoso, de vitimização ou mesmo de recalcamento de tudo o que aconteceu, a liturgia negra reconhece a realidade da mudança, de modo análogo à prajnâna (sabedoria) hindu que diz: “tudo é samsâra, tudo muda”. O antigo príncipe, o antigo guerreiro, o antigo sacerdote, o antigo artesão e o antigo agricultor tornaram-se escravos em terra alheia. É imperativo aceitar o real dessa transformação.
Seria essa uma consciência resignada? Não, muito pelo contrário, é a consciência de quem vê tudo o que lhe acontece, ou seja, o fluxo de uma mudança que comporta união e separação, nascimento e morte, sorte e azar, satisfação e insatisfação. Não se trata de assumir tristemente o seu destino, já que a luta ou a guerra podem fazer parte do processo, e sim de afirmar que, uma vez perdido o controle do curso dos acontecimentos exteriores (“A guerra trouxe a Mãe) é preciso perder o medo (“Pois a Mãe perdeu o medo…”) para se ter o “controle” interior, isto é, a abertura lúcida para o novo, que não exclui absolutamente a possibilidade de nova luta (“Não tema a batalha”). A afirmação é ao mesmo tempo um sentimento, uma sensibilidade lúcida, o que implica um afeto ligado a uma ação positiva, não emocionalmente reativa.
O cântico é, assim, uma celebração e um convite a que se faça a experiência vital das coisas, isto a que a tradição hindu chama de bhoga, ou seja, a experiência completa e gozosa do real, porque demanda ao mesmo tempo corpo e espírito. Não se trata de emoções, nem de sensações específicas, mas de uma regência, ou uma subordinação de sentimentos a uma maneira, resultante de um inter-relacionamento dinâmico (garantido pelo axé) em que a linguagem é indissociavelmente semântica, afetiva e cósmica.
Sobre o amor, diz Heráclito ser “he auton aukson”, ou seja, promotor de si mesmo, sem causa. O aforismo heracliteano traduziu-se em latim, também referido a esse afeto, como amor se ipse augens, para indicar a dinâmica de algo que se expande a partir de seu próprio movimento, fora de uma relação de causalidade explícita. Ao movermos um objeto qualquer num espaço determinado, a força que imprimimos inicialmente é a causa do deslocamento; mas o espaço onde isto ocorre não tem causa, é he auton aukson, uma condição de possibilidade de movimento.
Nessa ordem de sentimentos, a alegria é igualmente autopotenciadora, coincide com a própria realização do real, quer dizer, com o fluxo transformador das coisas no espaço-tempo. É a alegria, singular e concreta, e não um abstrato amor universal, que norteia a prática litúrgica da Arkhé negra. Alegria é algo paradoxalmente sério –– pode modular-se em sensualidade e contenção –– por ser a condição de possibilidade da comunicação, do proferimento da palavra. E esta não se descola jamais da ação, ou seja, o indivíduo não é conduzido por abstrações, mas por signos ou palavras que induzem à ação. É imprescindível o concurso do poder-fazer, da potência de realização em que consiste o axé.
Na concretude da liturgia negra, a palavra é sempre som, isto é, uma presença física singular, que se expressa na intenção do Outro, para desaparecer logo em seguida e renascer, renovada, na repetição em que implica o ritual. A potência de movimentação e transformação característica do axé aciona a palavra-som e emerge grupalmente como alegria, onde a música está virtualmente implicada (mesmo quando não se faça materialmente presente) por partilhar com o ritual a característica de uma direta intensidade sensível na celebração do real.
A profunda afinidade da música com a alegria está precisamente nessa partilha do sensível e da condição de he auton aukson, de uma realização que se auto-engendra. É verdade que a música é expressiva, mas não representativa, isto é, não duplica, nem copia ou imita uma referência qualquer situada na realidade imediata. Na musicalidade negra, é a temporalidade rítmica em sua fluidez instantânea, assim como o aqui e agora da palavra cantada, que se comunica aos corpos, liberando-os das referências que os encadeiam à gravidade da terra (acer, ager) e propiciando-lhes a asa (ala) da flutuação, da leveza. Alacer, alegre (uma regência lúcida, jamais um descontrole emotivo) é a realidade dessa experiência musical. Neste jogo, mais do que uma “aprovação irrestrita do real” (a palavra aprovação ainda guarda traços de um exame intelectual), a alegria aparece como uma afinação perfeita com o mundo. O contrário dela não é exatamente a tristeza, mas o ressentimento ou o rancor.
A alegria reserva-se à disposição que prioriza afetivamente –– logo, por meio do corpo em sua concretude pulsional –– o real humano em seus aspectos familiares, mas também o imaginário direta ou indiretamente articulado ao ultra-humano ou ao sagrado. Ela acontece onde a vida possa afinar-se lucidamente com o mundo em suas manifestações espontâneas, em suas afetações imediatas dos sentidos, sem o retardamento das abstrações da linguagem ou sem o recalcamento do corpo. A alegria emerge, então, como a ponta extrema dessa celebração de um real que transborda e não se pauta pelo resgate religioso de uma grande falta metafísica originária, nem pela revelação do desejo divino de que os homens façam grupo.
A alegria é sem pecado e sem perdão.