9 – Título do trabalho
ALEGRES OU MELANCÓLICOS? Quem somos nós?
Eulina Ribeiro
Presidente da SOBAB – SP
Diretora da Federação Latino-Americana de
Análise Bioenergética.
Há muito tempo são feitas várias interpretações sobre nossa gente.
Somos preguiçosos, somos um país não sério, somos exibicionistas, somos ingênuos, não profundos, não respeitáveis, etc.
Essas análises sobre nosso povo sempre me pareceram generalizadoras e por isso superficiais e, principalmente, feitas por pessoas que não conhecem nossa cultura.
Algumas vezes me sentindo ferida por tais inferências, talvez projeções, senti vontade de pensar sobre isso. Mas como responder se eu mesma não saberia definir quem somos nós.
Fui então buscar alguns autores que pesquisaram a história do Brasil para a compreensão de nossa identidade e sem nenhuma pretensão tentei reunir reflexões sobre o tema tão controverso: “a identidade de um povo”, a identidade do povo brasileiro.
Vou tentar desconstruir alguns paradigmas não necessariamente verdadeiros, sobre
Roberto Gambini em seu livro Espelho Índio tenta reconstruir a formação da alma brasileira desde a chegada dos portugueses e outros europeus, e sua relação com os habitantes da terra de Santa Cruz. É através da complexa relação entre os jesuítas e os nossos ancestrais, os índios, que, segundo Gambini, poderemos compreender nossa verdadeira identidade.
Muniz Sodré em seu livro Claros e Escuros Identidade, Povo e Mídia no Brasil busca responder ao grande enigma de ser brasileiro.
Darci Ribeiro em seu livro O Povo Brasileiro, analisa o processo de gestação étnica que originou os núcleos pioneiros que viriam a formar o povo brasileiro e as diferenças que plasmaram os nossos modos regionais de ser; através da crítica do sistema institucional procura analisar como se desenvolveu nosso povo.
Todos esses estudiosos de nossa cultura realçam um ponto em comum: a ignorância sobre nossa origem. Gambini reforça a idéia de que nosso povo se funda negando suas raízes, seu maior tesouro. Ainda de acordo com este autor, ficamos sem nosso passado, sem saber como se formou nossa alma.
Alexander Lowen em seu livro Alegria ressalta que estar “grounding” é ter consciência de suas raízes e de sua história. A não consciência leva a um estado de ilusão.
Nesta apresentação gostaria de, através de dois personagens de nossa literatura – Macunaína e Jeca Tatu, refletir sobre as citadas alegria e melancolia na cultura e no caráter do nosso povo.
Iniciando o processo de voltar às origens para entender hoje quem somos, parece que aprendemos, desde cedo na escola, que o Brasil foi descoberto por acaso, por calmarias e desvios de rotas.
Instaura-se um mito de origem: nossa terra maravilhosa foi descoberta.
Esta crença se desmorona quando vamos tomando consciência da verdade, que não se trata de um descobrimento e sim de uma invasão sobre um território habitado desde o Alasca até a Patagônia por muitos e diversos grupos culturais.
O Brasil, como parte do território americano, já estava ocupado por seres humanos há mais de 30 mil anos.
Ora quando acreditamos que nossa origem data de 1.500 negamos a existência de um povo anterior , negamos a alma do indígena, e portanto, negamos nossa alma ancestral.
No século XVI nossos antepassados índios já aprenderam a sobreviver, encontrar e preparar alimentos, proteger-se da natureza e dos espíritos, estabelecer formas de vínculos sociais, criar uma linguagem, curar doenças, etc.
Nossa alma estava ligada ao solo, à luz do sol, à noite, as estrelas, às arvores, aos rios, etc. Nossos ancestrais comungavam com a natureza e com tudo que a povoava. Esse tesouro humano, criado no decorrer de muitos anos, foi destruído por um golpe, um olhar estrangeiro que o distorceu e o negou.
Houve um verdadeiro processo de destruição cultural e humana, que Capistrano de Abreu qualificou de “a maior obra civilizatória já vista na história”, imagens preciosas do inconsciente coletivo proto-brasileiro se perderam, desapareceram complexos e elaborados estados de alma – sentimentos, maneiras de ver, compreender e valorizar o mundo.
O que nos resta hoje em dia de toda esta civilização perdida? Sòmente fragmentos, que carregamos em nossa camada profunda e aglutinadora da psique, que o Jung chamou de inconsciente coletivo.
Somos um povo que nasce concomitante a uma grave perda e precisamos compreender este significado. Além disso, o momento do nosso nascimento – século XVI – foi a época das descobertas, das artes e das profecias de Leonardo da Vinci. Momento em que há a grande supremacia da Igreja Católica que livra-se do pagão, do mouro, do judeu e de tudo aquilo que lhe é estranho e incontrolável no plano externo, dando força à racionalidade.
“Coincidência ou não, no momento que a Europa afasta o outro exterior, o outro interior lhe surgirá diante dos olhos, nas Américas, como incômodo e indecifrável espelho.”
Levará 400 anos, para que Freud reconheça que o mal não está exclusivamente depositado no outro, como crê o Ego, mas dentro de cada um de nós. Até o século XVI, para o mundo ocidental, o mal estava sempre no outro, no diferente.
Ainda segundo Gambini, quando não há mais pagãos, ímpios, judeus ou mouros para perseguir, e não podendo a consciência européia percebê-lo em seu próprio interior, surge o momento de buscar um outro externo. É exatamente neste contexto inconsciente que se desenvolve a cartografia e a navegação que irá proporcionar o encontro entre duas parcelas diametralmente opostas da humanidade. A civilização européia, que vinha desde o classicismo grego estruturando uma consciência baseada na racionalidade e do outro lado a América, que representaria o mundo do inconsciente, regido pelo pensamento não linear, não lógico, associado aos sentidos, à observação e ao respeito pelo sobrenatural.
Um pensamento diferente, mas capaz de classificações, explicações e previsões nunca dissociado do sentimento, da intuição e de um êxtase diante da vida e da natureza, com o qual convivia sem conflito.
É desse confronto entre o consciente e o inconsciente, entre a razão e a não razão que brotará o germe da mente e da identidade que, a partir de 1.500, será o Brasil. (Brasa para queimar antigas raízes).
Os índios nus e curiosos receberam os portugueses de braços abertos, pois de acordo com a mitologia tupi-guarani apareceria pelo mar um homem novo que mostraria o caminho para a terra sem mal. Este traço, proveniente dos domínios de Eros, de receber o outro diverso e percebê-lo como portador do novo e da salvação, é parte integrante da alma indígena.
Os marinheiros das caravelas também viveram uma percepção projetiva, só que oposta. Segundo Gambini este choque de projeções, como dois pássaros em vôo contrário, é a matriz da alma brasileira e da dolorosa destruição da alma ancestral da terra.
A alma brasileira nasce de uma projeção cruzada; a portuguesa percebia o litoral baiano (este litoral que 500 anos depois aqui estamos reunidos) como o Paraíso terrestre e os índios como filhos do demônio e do mal.
Os europeus cultuavam uma visão do Paraíso semelhante à tradição do Gênese, que evoca um jardim opulento habitado por animais dóceis e um homem e uma mulher inocentes e nus, sem pecado e vivendo como crianças alegres.
Esse adão-índio será captado pelo olhar português projetivo, como um trabalhador braçal à espera de feitores, e essa Eva nativa, um objeto gratuito de desejo e um ventre fecundo.
Trata-se-ia de uma coincidência este encontro no mesmo litoral baiano, no qual, juntos americanos e europeus mais de 500 anos depois, nos reunirmos sobre este momento histórico?
É a Análise Bioenergética que enfatiza a harmonia entre a função egóica e os impulsos inconscientes, a responsável por este momento precioso, onde juntos podemos reorganizar antigos conceitos.
O desenho de um “caráter nacional” vai-se fazendo aos poucos, desde o século XIX, nas obras de ficcionistas e pensadores, sempre na direção indicada pelo paradigma da mestiçagem que perseguia uma identidade assimiladora das contribuições estrangeiras, afirmativa das virtudes próprias e crítica das fraquezas ou defeitos.
As palavras de Paulo Prado “sem outro ideal, nem religioso nem estético, sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística, criava-se pelo decurso dos séculos uma raça triste”, leva-nos a ponderar sobre a questão inicial: afinal quem somos: alegres ou tristes?
Debrucemo-nos agora sobre duas figuras que podemos ver como “paradigmas” das fantasias e nos quais nos encaminharemos na questão: somos alegres? somos tristes?
Mário de Andrade dedica Macunaína a Prado, que era membro da aristocracia paulista, seguidor de um pensamento racista e pessimista quanto à nação brasileira, assim como Monteiro Lobato nos apresenta seu Jeca Tatu, o caipira, imagem popular do ser nacional decaído e impermeável ao progresso.
Monteiro Lobato diagnosticou o Brasil como um país com mentalidade colonial, que não tinha jeito nem conserto, com uma essência caracteriológica de cafajestismo e sem-vergonhice. Como vemos, já era um prenúncio do Macunaíma.
Jeca Tatu, segundo Lobato é uma caricatura do homem do interior, o caboclo preguiçoso, espontâneo e adaptado como o piolho de galinha, incapaz de viver em outros meios. Esse caboclo também é incapaz de viver em outras serras, e depreda o ambiente em que vive. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de milho. Enquanto os romancistas da cidade criam lindos cenários e mitos, Lobato – fazendeiro – vive na roça e realísticamente nos fala do homem do campo. O Jeca é o seu “agregado”, o trabalhador dentro de sua fazenda.
Macunaíma é o herói que retoma o Jeca em suas características morais e sociais, também é impenetrável ao progresso e a sua preguiça, como a do Jeca, é ocasionada por razões inconscientes que ultrapassam as suas próprias compreensões. Ambos se encontram em estado natural, característica do homem primitivo brasileiro, não civilizado, sofrendo conseqüências de uma civilização que desconhecem e que os oprime.
Tanto Lobato quanto Mario de Andrade tentam salientar que o sistema sócio-econômico e a saúde são responsáveis pela trágica deformação do homem brasileiro A feiúra e a preguiça também seriam conseqüências naturais desse tipo de desconcerto.
O Jeca nada espera da vida, nada o anima, não age, ao contrário, ele acocora-se diante de circunstâncias catastróficas que se lhe apresentam. Macunaíma , o imperador, foge amedrontado no momento de se enfrentar com o gigante Piaimã.
O primitivo e a natureza-mãe fazem parte desse cenário onde procuram sobreviver esses dois protagonistas. Vivem basicamente ainda dentro da cultura “pré-lógica” dos índios, seus ancestrais. Macunaíma morreria de fome se não fossem as frutas da floresta. No seu nomadismo, como o Jeca, ele se muda para onde haja colheita fácil. “Madurou milho na terra dos Ingleses, vou para lá diz Macunaíma. Jeca, por sua vez, quando vai às festas, leva sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher: cocos de tucum, guabirobas maracujás, orquídeas etc… Para ele o que importa é a lei do menor esforço.
O equivalente de “não paga a pena” do Jeca é “ai….que preguiça” do Macunaíma, filosofia que retrata a indolência e a apatia.
Luxurioso e sempre pronto para as suas aventuras eróticas, é mesmo incrível que Macunaíma recuse uma “brincadeira sexual” por causa da preguiça. Tanto Jeca como Macunaíma eram atacados pelo impaludismo.
“No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a madorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio de tanta vida, não vive”.
As teses dos dois são idênticas. Igualzinho ao Jeca, Macunaíma “é o brasileiro que se
aliena de suas características e sucumbe”, ficando relegado ao “brilho inútil das estrelas”.
Mario de Andrade nos fala da passividade do brasileiro como modo de reagir a uma organização de vida que não o atinge e não lhe serve, sua submissão a estruturas impostas de cima para baixo.
Na figura de Jeca Tatu somam-se traços negativos que se incorporam à nossa visão sócio-econômica de um longo período de subdesenvolvimento; conformado com esse destino, Jeca Tatu não era apenas uma bela página literária, era também um libelo social e político.
Macunaíma é uma figura atravessada por uma espécie de pulsão de morte institucional – nele nada é regular, convencional, progressista; tudo é preguiça, improvisação, anarquia. Falta-lhe a dimensão da permanência, imprescindível à definição de caráter.
Alfredo Bosi diz: “Do ponto de vista ideológico significa pensar o próprio povo brasileiro como uma existência selvagem, colonial e moderna, à procura de uma identidade que beira a surpresa e a indeterminação”.
Segundo Bosi, o não caráter aproxima-se mais da constatação melancólica de uma amorfia, sem medula ou projeto, do que do otimismo do amor à fala e aos feitos populares, de teor livre e instintivo.
Mário faz de Macunaíma um herói melancólico também por ele ter sucumbido maravilhado, ao estrangeiro.
“Vei se vinga do herói por ele ter cedido aos encantos de Dna. Sancha, portuguesa.
Ora a identidade brasileira sempre foi uma preocupação de Mario de Andrade.
Esta perda sofrida, este afastamento da natureza e de nossas crenças, talvez seja uma razão para entendermos a melancolia e a passividade comuns ao nosso povo.
Nunca vivemos o luto dessa perda, ao contrário negamos a importância de nossas raízes ao querer construir uma imagem igual à do colonizador, pai, poderoso e sábio.
Além disso, parece que estamos eternamente esperando o salvador, aquele que nos mostraria o caminho para a terra sem mal, talvez o Jardim do Eden, o paraíso perdido.
Questionando Paulo Prado, a raça triste foi criada por falta de ideal ou por terem sido estirpados, a fórceps, os valores e crenças de seus antepassados.
Jeca Tatu o caboclo indolente, o depredador do ambiente, atuava em função de raízes inconscientes. Porque só ele não canta, não ri e não ama, ou melhor, não vive. Talvez por não poder aceitar o modelo imposto, não acreditar em projetos que não escolheu e ser incapaz de se sonhar fazendo parte do progresso e do desenvolvimento.
Assim, concordo com Alfredo Bosi, quando fala da melancolia da não forma, ou da falta de projeto.
Segundo Alexander Lowen, podemos aceitar a perda se soubermos que não
estamos condenados a um luto contínuo, assim como podemos aceitar a noite
porque sabemos que o dia nascerá e aceitar a tristeza, quando sabemos que a
alegria brotará novamente. Mas a alegria só pode brotar quando nosso espírito
é livre.
A principal razão para a ausência de alegria nas atividades comuns é que são
controladas pelo Ego. As crianças cujas atividades ainda não são totalmente
controladas pelo Ego, conseguem vivenciar a alegria, seguindo os impulsos
naturais do seu corpo.
A dança e a música são atividades que podem se transformar em vivências mobilizadoras e que podem nos fazer perder este controle. Para a maioria dos povos primitivos, dançar é parte das suas cerimônias religiosas. De qualquer forma dançar sempre leva à alegria.
Acho que é inegável a importância da música e da dança para nós. O brasileiro sempre foi visto como um povo alegre e festivo, está sempre dançando. Talvez a dança nos ajude a afastar os maus-espíritos ou então tenha se transformado num antídoto contra o marasmo e a passividade.
No carnaval podemos tudo!
O povo pode cantar, dançar e reescrever sua história. Podemos ser reis, rainhas, índios, escravos e todos juntos, qual uma mágica, somos transportados para o mundo do faz de conta e nesses quatro dias, somos alegres e felizes outra vez.
E tudo se acabar na quarta feira……..
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mario – Macunaíma O herói sem nenhum caráter.
LOWEN, Alexander – Alegria
GAMBINI, Roberto – Espelho índio
JAFFE, Noemi – Macunaíma
LANDERS, Vasda B. – De Jeca à Macunaíma
RIBEIRO, Darcy Ribeiro – O povo brasileiro
SODRÉ, Muniz – Claros e Escuros Identidade, povo e mídia no Brasil