25 – Título do trabalho
O CUIDAR NA PERSPECTIVA DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: UM CAMPO DE POSSIBILIDADES INSUSPEITADAS
Ana Celeste de Araújo Pitiá
Doutora pelo Programa Interunidades de Doutoramento da Escola de Enfermagem da USP – Ribeirão Preto – SP; Mestra em Enfermagem Psiquiátrica pela Escola de Enfermagem da USP- Ribeirão Preto, Psicoterapeuta Corporal Neo-Reichiana, com formação no Instituto Neo-Reichiano Lumen de Ribeirão Preto, Treinee internacional em Análise Bioenergética pelo The International Institute for Bioenergetic Analysis Suíça (4º ano), através da Sociedade de Análise Bioenergética Lumen de Ribeirão Preto. Curso de Acompanhante Terapêutico – 1997.
Manoel Antônio dos Santos
Apresentação
Este trabalho consiste em um relato de experiência em Acompanhamento Terapêutico de um paciente diagnosticado como portador de transtorno depressivo, em primeiro surto psicótico. Trata-se de um homem de 46 anos, eletricista, encaminhado pelo setor de medicina do trabalho da empresa em que trabalhava, manifestando os seguintes sintomas: medo das máquinas, sentimento de incapacidade para o trabalho e idéia prevalente de ruína relacionada à forte impressão de que iria ser despedido de seu emprego, o que possibilitaria uma derrocada econômica em sua vida pessoal, uma vez que “toda sua família ficaria na miséria”.
Encaminhado para Acompanhamento Terapêutico para ser auxiliado, terapeuticamente, em seu próprio local de trabalho, apresentava manifestações sintomáticas que se relacionavam às preocupações e ocupações com sua atividade funcional. No acompanhamento deste caso, chamou a atenção do acompanhante: a) a solicitação do Acompanhamento por iniciativa de uma empresa; b) a possibilidade do acompanhante terapêutico se apresentar como um agente entre psiquiatra/empresa/cliente/família; c) a possibilidade de utilização de técnicas de terapia corporal em situações emergenciais apresentadas pelo cliente, em que respiração e movimentos de corpo auxiliaram na continência de estados de ansiedade e insegurança, favorecendo também o processo do construção do vínculo entre terapeuta e cliente.
Ao término da intervenção, o cliente readaptou-se ao trabalho e mantinha o estado de recuperação por meio do suporte de uma psicoterapia corporal individual combinada com acompanhamento medicamentoso, com redução gradativa nas dosagens.
Nosso intuito, nesta apresentação, é trazer material clínico que possibilite colocar em discussão opiniões, sugestões e críticas sobre uma maneira de se fazer o Acompanhamento Terapêutico.
Introdução
Mediante este relato de experiência pretendemos apresentar um caso de Acompanhamento Terapêutico que foi conduzido pela primeira autora, de novembro de 1999 a agosto de 2000, na cidade de Ribeirão Preto, município de médio porte situado no noroeste do estado de São Paulo.
O cliente em questão foi encaminhado por um médico do trabalho que, frente a uma situação de surto psiquiátrico diagnosticado como “psicose depressiva”, que acometera um dos funcionários da empresa em que trabalha, necessitou estabelecer alguma medida que pudesse auxiliar aquela pessoa na dificuldade que se apresentava, de modo a se evitar, inclusive, sua dispensa do quadro de trabalhadores.
Percebemos, de início, que a busca do trabalho em AT podia ter também como justificativa a procura de um tratamento que pudesse evitar alguma medida empresarial mais rígida sobre um funcionário antigo e que até então se mostrara eficiente em seu serviço, na tentativa de reabilitá-lo para o retorno à sua atividade laboral.
A acompanhante terapêutica (at) recebeu algumas informações do setor de medicina do trabalho da empresa a respeito do que estava sendo observado sobre o comportamento daquele funcionário e, a partir do contato pessoal com o cliente, puderam ser traçadas as diretrizes básicas dos atendimentos.
Compreendemos que, atuando como acompanhante terapêutico naquele caso, estaríamos lidando com a desordem emocional e com a possibilidade de estresse ocupacional, o que abria a perspectiva de que poderia acompanhá-lo na própria empresa – seu local de trabalho. Essa intervenção poderia, então, auxiliar o cliente em sua recuperação individual, contribuindo para evitar outras situações de crise e assegurar o retorno da capacidade para o trabalho.
Os acompanhamentos passaram a ser realizados ao lado do atendimento do médico psiquiatra, que já estava administrando a prescrição medicamentosa para o cliente.
O caso
Trata-se de um homem, ao qual daremos o nome fictício de Heitor, de 46 anos de idade, eletricista do setor de manutenção de uma fábrica, onde estava empregado há 16 anos. Casado, pai de dois filhos, sendo um menino de 15 anos e uma menina de 5 anos. Em seu ambiente de trabalho, era considerado o melhor eletricista, com conhecimento inclusive histórico no processo de evolução do funcionamento empresarial, dado seu tempo de serviço e envolvimento afetivo com o local.
Segundo seu relato, cumpria uma escala de 12 horas de serviços diários e era freqüentemente solicitado em horas-extras para resoluções de problemas na manutenção das máquinas. Em casa era quem centralizava todas as decisões sobre as despesas domésticas e aquisição de bens domésticos. Ele próprio, juntamente com sua esposa, havia construído a residência da família.
Pelos dados colhidos no setor de medicina do trabalho, começou a apresentar “medo das máquinas”, chegando a ficar parado, chorando, frente a alguma delas. Dizia-se estar incapaz para realizar seu trabalho. Além disso, e durante o processo terapêutico, suas idéias de ruína eram prevalentes e estavam relacionadas à forte impressão de que iria ser despedido do emprego, o que resultaria, em sua ideação deliróide, em uma situação de escassez e penúria econômica a ponto da sua família ficar na “miséria”.
CASTEL (1991), comenta que, ao se dar a ruptura do vínculo social do trabalhador – excluído e, portanto, fora da possibilidade ou oportunidade de trabalho – este se insere em um processo de desfiliação, em que passa por precariedade econômica, privação, fragilização relacional e isolamento. Percebemos uma relação análoga na manifestação deliróide apresentada pelo cliente, temendo fixamente ser despedido, desfiliando-se, portanto, de sua possibilidade relacional no contexto social.
Nessa empresa também haviam acontecido mudanças tecnológicas no funcionamento de algumas máquinas, que alteraram a maneira de se fazer a manutenção das mesmas. Tratava-se, agora, de um sistema computadorizado, dispositivo ainda pouco familiar ao cliente. Além disso, pela competência demonstrada ao longo de anos de trabalho, ocupava o lugar de eletricista número 1 do setor, o que lhe conferia um lugar de líder de sua equipe. Segundo informações, essa posição foi tomada por ele como algo muito penoso, com o que não soube lidar, nem suportar a carga da responsabilidade assumida.
Iniciamos, então, os acompanhamentos em 23 de novembro de 1999. Ele se encontrava internado em um hospital geral, prática empregada pelo médico psiquiatra que o acompanhava na época.
Foram percebidos dois grandes eixos em suas ideações deliróides – o primeiro: ele seria demitido, por não conseguir mais trabalhar como antes; o segundo: uma vez despedido, ficaria na “miséria” e sua família não teria mais como viver, destacando-se aqui a idéia de insuficiência e ruína.
MAUER & RESNIZKY (1987) referem que os trabalhadores de saúde mental devem contribuir para um tratamento que alivie, ou mesmo remova, a dor psíquica a partir de: ouvir a loucura (o delírio); compreender a fragilidade do ser humano em sofrimento psíquico e acompanhar a sua desolação. Esse são objetivos terapêuticos possíveis de serem alcançados pelo acompanhamento terapêutico de enfermos mentais, quando se trabalha com uma outra concepção de enfermidade mental, que evita a clivagem de “loucos” e “sãos”.
No primeiro contato com o cliente, a acompanhante o encontrou extremamente ansioso e angustiado, apresentando sinais de rigidez muscular, que lhe impedia a deambulação, bem como deitar livremente sua cabeça no travesseiro. Ele agarrou-se nas mãos da acompanhante e, em uma ação de desespero, pediu-lhe que o ajudasse, logo após ela ter se identificado e explicado o que estaria fazendo ali, ao “visitar-lhe”.
Dessa maneira, iniciado o processo terapêutico de acompanhamento, iniciaram-se os atendimentos, à medida que a at foi registrando a evolução do cliente e comunicando-se com os demais profissionais envolvidos no tratamento.
Foi logo percebida, desde o início, sua forte ligação com o trabalho e, assim, a empresa foi utilizada para alguns acompanhamentos, uma vez que se observou que esse contato contribuía na diminuição da ansiedade relacionada com a ideação de que iria ser demitido. Essa observação ofereceu subsídios para uma ação terapêutica voltada para a necessidade expressa por esse indivíduo em dificuldade.
Sobre a clínica do Acompanhamento Terapêutico, a EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA A CASA (1991, 1997) comenta que o cliente é alguém com nostalgia do fluxo de vida, desejoso de reinserção prazerosa no cotidiano, considerando-se que seus órgãos dos sentidos perderam a capacidade de captar o mundo e de captar-se como ser humano que almeja recobrar esses sentidos, em vez de ser atormentado por eles. Notamos que uma parcela da identidade desse cliente estava comprometido na complexidade individual e grupal do processo de fabricação da loucura.
O compromisso do acompanhante terapêutico, como agente de saúde, é com o potencial saudável, a valência positiva, ou seja, com o eixo vetorial voltado para a realidade. Desse modo, o compromisso assumido é com a apropriação e re-apropriação dos sentidos, a rearticulação das percepções dentro de um movimento contínuo de aproximação entre o sentir e o pensar, tecendo a delicada arte de reinserir o cliente na trama das relações sociais, revigorando assim o fluxo da vida.
O objetivo do acompanhante terapêutico é passar a integrar a vida cotidiana do cliente, por um número estabelecido de horas, de tal maneira que se possa formar um vínculo seguro e estável com ele. O trabalho consiste em estar com ele em diferentes situações e contextos, servindo de ego auxiliar que o ajude a estabelecer uma ponte entre o mundo interno e o mundo externo, restabelecendo o fluxo permanente entre fantasia e realidade. Assim, é possível auxiliar o indivíduo a receber, identificar e responder aos vários estímulos que se lhe apresentem, oferecendo um clima de segurança e incentivo, abrindo-o para novas vivências. O at é um intérprete ativo, operacional, que atua no mundo real e concreto, parceiro cotidiano do cliente, investigando socialmente, também, o locus desse indivíduo, mas olhando esse locus como um contexto terapêutico ampliado.
No atendimento do caso de Heitor, também estava sendo possibilitado que, através da manutenção do contato com a empresa, ele pudesse sentir o apoio que estava sendo oferecido pelos colegas, além do que isso poderia auxiliá-lo no desenvolvimento de algumas atividades laborais, mesmo que voltadas a outras tarefas que não as suas de eletricista, procurando contribuir no sentido de que ele pudesse olhar para outras capacidades, mesmo sentindo-as mínimas naquele momento de crise. Ele sempre falava: “Como é que pode eu ficar assim, não vou poder trabalhar de novo, não consigo fazer nada.”
No contato com o cliente observamos aspectos corporais predominantes que se relacionavam com os sentimentos de insegurança, instabilidade afetiva e falta de contato com a realidade: a dificuldade física de equilíbrio corporal, tanto em ficar em pé, como em andar; o desejo extremado de voltar ao trabalho concomitante a um sentimento de insuficiência para tal; bem como a expressão de seu medo de ser mandado embora do serviço, em que associava a preocupação com os filhos e a manutenção das necessidades materiais da casa, o que incrementava seu sentimento de fracasso e incapacidade.
Heitor referia-se às suas dificuldades físicas com intensa perplexidade: “nunca mais vou poder trabalhar de novo… veja, eu nem consigo andar… parece que estou sem pernas… como foi acontecer isso comigo?” Além disso, não dormia direito há aproximadamente uma semana – e relacionava esse tempo com o início dos acompanhamentos, fazendo uma média de uma hora de sono por dia. Percebemos, por outro lado, que nessa época ele estava saindo de uma escala de trabalho noturno.
Algumas questões afloravam à mente da at em relação à sua sensação de falta de pernas: isso poderia sugerir sua falta de contato com a realidade, ou mesmo a sensação de estar paralisado frente a sua própria vida? Sua ideação deliróide buscava traduzir aquilo que se manifestava corporalmente, na instabilidade que quase o impedia de ficar em pé? Em outro sentido, que respostas poderíamos obter sobre o que seja a realidade?
LOWEN (1982, 1983) refere que existem algumas verdades que ele pensa serem fundadas na realidade, tais como: a importância de uma boa respiração, o valor de se estar liberto de tensões musculares crônicas, a necessidade de estar-se identificado com o seu próprio corpo e o potencial criativo do prazer. Nossas pernas são estruturas que nos comunicam com nossa base no chão, que são os pés. Nesse sentido, pés firmados no chão nos possibilitam segurança física corporal, associada a pernas que assegurem essa sensação transmitida para o restante do corpo, sem que estejamos de joelhos travados, pois assim eles bloqueiam energeticamente o fluxo circulatório corporal.
Os acompanhamentos
No contato inicial com o cliente foi possível avaliar a necessidade de atendimento diário. Assim, estabelecemos acompanhamentos diários com a duração aproximada de uma hora e trinta minutos. Dessa maneira, pudemos estabelecer contatos cada vez mais próximos, que nos permitiram ir percebendo por onde intervir, por meio do vínculo que ia se estabelecendo gradualmente.
Heitor permaneceu internado por uma semana em um hospital geral. Nesse período, não conseguimos estabelecer contato com o médico psiquiatra que o acompanhava, pois nos desencontrávamos nos horários de atendimentos.
Após a alta, ele ainda permanecia com extrema dificuldade de andar, perda de peso, rejeição à alimentação e descuido da higiene corporal, que era feita pela esposa. Acompanhei-o até a consulta médica subseqüente à internação e aproveitei a oportunidade para apresentar-me ao psiquiatra e, assim, poder ser estabelecido um contato profissional de troca. O psiquiatra parecia desconhecer o trabalho em AT, contudo, não emitiu nenhum juízo de valor sobre esse tipo de intervenção, apenas ouviu o que lhe dissemos sem tecer nenhum comentário.
Os diálogos a respeito da evolução do caso eram travados por ocasião das consultas com esse médico. Acompanhávamos o cliente, juntamente com a esposa, e assim eram colocadas as visões da família e da at.
Os acompanhamentos freqüentemente aconteciam em sua residência ou na praça em frente a sua casa. Por vezes ele aceitava tomar um sorvete, ou ir até o shopping, ou ir até o banco verificar sua conta-corrente, para que pudesse visualizar seu saldo bancário. Essa ação tinha o propósito de aliviá-lo de sua idéia fixa de que não teria mais dinheiro no banco.
Nos encontros podíamos escutá-lo, acolhendo suas constantes idéias de ruína e auto-depreciação. Na praça, sentávamos na grama e continuávamos a ouvi-lo; vez por outra, o estimulávamos a tirar os sapatos e poder colocar os pés bem plantados no gramado, ou pedíamos que ele pudesse pegar com as mãos a terra na qual estava sentado. Ao fazer isso percebíamos que ele ampliava sua respiração naquele momento. Parecia aliviar um pouco sua ansiedade, no que possibilitava uma melhora na maneira como andava, ou seja, conseguia nesses momentos desenvolver uma marcha mais firme, sem necessitar de auxílio nessa ação – considerando-se que era muito comum ele andar auxiliado pela at.
A empresa concedeu-lhe férias na expectativa de que pudesse melhorar nesse período e, assim, pudesse reassumir suas atividades. No decorrer de todo o processo de atendimento, o fator trabalho foi uma referência muito forte para o cliente, que pedia insistentemente para retornar às suas atividades laborais.
Vencidas suas férias e como não houvesse tido melhoras consideráveis que lhe permitissem atuar novamente em sua função de eletricista, em acordo com o médico psiquiatra e com a permissão da empresa o conduzimos até o local de trabalho para que, exercendo qualquer outra função, permanecesse por algum tempo freqüentando o lugar, e, assim, pudesse ter algum tipo de reasseguramento que combatesse seu sentimento de incapacidade e medo de ser demitido.
Dessa maneira, no Ambulatório de Saúde do Trabalhador da fábrica, ele ajudava no preenchimento de fichas, orientado pela auxiliar de enfermagem do local. Ali ele passava algumas horas, levado pela at, para depois ser conduzido de volta à sua casa pelo técnico de segurança da empresa, ou pela at. Por mais de uma vez pudemos observar que ele ficava extremamente ansioso por não estar conseguindo fazer o preenchimento correto das fichas.
A at acompanhava-o em sua casa e estabelecia contatos com a família, mais especificamente com sua esposa, que relatava todas as dificuldades sentidas e surgidas no cotidiano doméstico. Pudemos fornecer esclarecimentos sobre o diagnóstico, naquela altura já estabelecido pelo médico psiquiatra como Depressão Psicótica. Apresentávamos então todos os limites possíveis, considerando-se que, naquele momento, tanto o cliente quanto a família necessitavam de estrutura.
Percebíamos pequenos sinais de reação positiva ao tratamento, que eram logo derrubados por algum outro indício de reação mais negativa. Por exemplo, após uma noite em que conseguira ter quatro horas de sono, amanheceu parecendo estar disposto e nada falou sobre suas idéias prevalecentes de ruína. No período da tarde, já se manifestava extremamente ansioso, andando de um lado para o outro, dentro de casa, falando sobre a extrema precariedade em que iria deixar a família, por causa de sua incapacidade. Quando a at chegava, relutava muito em sair de casa. Contudo, já se encontrava “pronto”, afirmando que nada resolveria o seu caso. Por vezes até nos recebia de maneira hostil, para depois consentir em realizar alguma atividade.
A demonstração de hostilidade voltava-se, primeiro, para si próprio, pois se considerava um fracassado. Quanto ao tratamento, além de assegurar de que nada resolveria o seu problema, falava que a empresa acabaria lhe mandando embora. Todos esses sinais eram característicos da sintomatologia depressiva.
A tentativa de ser levado ao local de trabalho, como recurso terapêutico, não surtiu o resultado esperado. Pelo contrário, percebemos que isso estava se constituindo até mesmo em um fator de estresse, dado que, como ele não conseguia reagir, devido aos próprios limites, o fato de ir até a empresa e não poder trabalhar como antes estava lhe causando maior inquietação e ansiedade. Dessa maneira, em entendimentos com o médico do trabalho e com o psiquiatra, bem como com o setor de recursos humanos da empresa, que acompanhava também de perto os retornos dos atendimentos, decidiu-se pelo afastamento do funcionário via INSS.
O psiquiatra que lhe acompanhava recomendou que ele iniciasse uma psicoterapia de apoio. A esposa, dada à proximidade afetiva propiciada por conta da forma de atendimento em Acompanhamento Terapêutico, solicitou-nos que indicássemos alguém. Heitor foi, então, encaminhado a um outro médico, que além da facilidade de pertencer ao convênio, era também alguém próximo do contato profissional da acompanhante, e também relacionado a mesma abordagem terapêutica – a psicoterapia corporal.
A esposa do cliente encontrava-se extremamente afetada pela situação do marido, visto que assumia sozinha as providências do seu tratamento. A família (pais e irmãos) permanecia omissa, segundo a percepção da esposa, o que lhe acarretava uma sobrecarga emocional. Assim, em diálogo com ela, sugerimos um outro encaminhamento, o que possibilitou o início de uma psicoterapia individual de apoio para ela própria.
Com o passar do tempo o quadro clínico de Heitor ia se agravando: não havia resposta medicamentosa satisfatória e o sono continuava insuficiente, assim como persistiam as idéias predominantes de fracasso e desespero. As intervenções corporais realizadas surtiam efeitos, mesmo que momentâneos, quando em crise de ansiedade extrema. Também eram fornecidos muitos estímulos à deambulação, que propiciava trabalhar terapeuticamente seu corpo e sua reação à crise depressiva, possibilitando também uma descarga de tensão emocional.
A esta altura, a esposa do cliente tomou a iniciativa de mudar de psiquiatra, justificando que as medicações que ele tomava não surtiam mais efeito, pois o sono não se regularizava. Além disso, alegou dificuldades de comunicação com o médico que o assistia. Em nossos atendimentos continuamos oferecendo apoio maciço às tomadas de decisões da família, especificamente a esposa, que sempre procurava conversar antes de decidir.
Com o novo psiquiatra, medicações de primeira linha foram utilizadas, sem contudo surtir o efeito desejado. Nesse instante do tratamento, a perda de peso corporal era considerável. Heitor continuava deambulando com dificuldade, demonstrando fraqueza muscular e desequilíbrio em seu eixo corporal.
Procurávamos, nos atendimentos, estimular a deambulação, em uma tentativa de possibilitar maior firmeza de suas pernas e seus pés no chão, oferecendo-lhe apoio como um meio de fortalecer seu sentimento de segurança, além de possibilitar-lhe contato com o seu próprio corpo e, conseqüentemente, consigo mesmo.
Exercícios corporais do tipo alongamento e flexibilidade eram executados na praça em frente de sua casa. No momento em que realizava esses movimentos, ele parecia se acalmar e, assim, podíamos conversar longamente sentados no banco da praça. E o escutávamos dizer como era estranho estar nesse estado de perturbação mental, queixando-se que sofria muito com sua incapacidade para trabalhar. Apresentava uma labilidade afetiva importante, e chorava como criança ao falar sobre sua preocupação de ver sua família abalada por sua doença. Dizia: “Parece que estou assistindo a um filme… É um pesadelo tudo isso.” Observávamos, nesses momentos, que era como se ele estivesse mesmo falando de uma outra parte sua. Pois era um eu dividido que se apresentava nos momentos em que descrevia a sensação de estar assistindo a um filme de si próprio.
Percebíamos que minha figura de at, através do vínculo estabelecido, estava se tornando um agente que se inseria entre ele, sua família, a empresa e os demais profissionais de saúde. Intermediávamos providências a serem tomadas, estabelecíamos um canal de troca de informações que eram prestadas aos profissionais e à família, e nos retornos que dávamos à empresa sobre o processo de tratamento. Este último, por meio de relatórios de atividades entregues mensalmente à empresa, os quais eram acrescentados ao prontuário do funcionário, informando sucintamente sobre a evolução terapêutica, resguardados todos os cuidados éticos necessários.
Considerando-se tudo o que já se falou na bibliografia sobre acompanhamento terapêutico, pudemos sentir pelo nosso contato com essa prática que o compromisso do acompanhante terapêutico, como agente terapêutico de saúde, é com o potencial saudável, a valência positiva, o eixo vetorial voltado para a verdade e a realidade. Desse modo, o compromisso é com a apropriação e re-apropriação dos sentidos, a rearticulação das percepções, tecendo a delicada arte de reinserir o cliente na trama das relações sociais para que ele possa revigorar o fluxo da vida
No entanto, pelo contato com esse cliente percebemos sua resistência, vista em sua reação negativa a todo tratamento que lhe era oferecido. As medicações não surtiam efeitos satisfatórios, nem quanto ao sono, nem quanto à ideação deliróide. O quadro foi se agravando ao ponto de Heitor haver tentado suicídio por enforcamento em uma madrugada de insônia. Na época, já se vislumbrava a possibilidade de ser hospitalizado em regime de semi-internação em hospital-dia, ao lado da continuidade do trabalho da at, fora do hospital.
Contudo, essa sua investida contra a própria vida indicou aos profissionais que estavam realizando a triagem a necessidade de internação integral. Eles não conheciam o trabalho de Acompanhamento Terapêutico, de modo que tivemos pouca abertura para alguma troca profissional. Como at, oferecemos suporte ao cliente e à família, no sentido de serem tomadas as providências necessárias ao internamento.
Dessa maneira, tanto sua esposa como a empresa assumiram o posicionamento de não o internarem em hospital psiquiátrico do tipo manicomial. Através de informações do médico, que estava atuando como terapeuta de apoio, foi mantido contato com um hospital que funciona nos moldes de uma comunidade terapêutica. A empresa autorizou o internamento pelo convênio do funcionário.
Assim, continuamos os atendimentos até serem resolvidos os papéis de internação e o acompanhamos até o hospital, levando um relatório do médico responsável pela terapia de apoio, que ficou como responsável pelo caso, uma vez que tinha o convênio necessário ao internamento. A at também elaborou um outro relatório, em que relatava a trajetória dos acompanhamentos e o processo evolutivo do cliente. A empresa cedeu um de seus carros e fomos juntos: o cliente, a esposa, a at e um funcionário que dirigia o carro. Durante todo o caminho Heitor manteve-se abraçado à esposa e, vez por outra, segurava na mão da at dizendo: “Ana, não deixa que me levem para lá não? Eu não quero ser internado.” Sentí muita compaixão por seu sofrimento e segurava fortemente a sua mão, olhando-o nos olhos, acolhendo sua dificuldade e sua dor, afirmando-lhe que no fim tudo ia acabar bem.
Sua internação durou cerca de aproximadamente dois meses e meio. Ele permaneceu por algum tempo em uma área restrita, devido ao risco de fuga e suicídio, que já havia apresentado em casa e que indicava, mais especificamente, a internação integral.
Internado ele também passou por nove sessões de eletrochoques, conforme critérios desse tipo de intervenção, justificada pela configuração da resistência depressiva neste caso: ausência de respostas às medicações psiquiátricas utilizadas e idéia predominantemente suicida e de fuga, que não respondia ao tratamento.
Esse procedimento foi marcado por reação de choque de sua esposa, que autorizou por escrito as administrações das sessões, mediante esclarecimentos do médico psiquiatra do hospital. Contudo, apesar de devidamente esclarecida, ela continuava bastante abalada. A at só tomou conhecimento dessas sessões de ECT quando no carro, de volta a Ribeirão Preto, visto que não participou da entrevista do médico com a esposa. E, o susto da esposa mediante essa modalidade de intervenção, associou-se ao da at que, apesar de conhecer os procedimentos científicos para tal empreitada, opta por uma outra maneira de atender pessoas em dificuldades psíquicas.
Gostaría de relatar aqui o sentimento de extrema solidão e impotência que a at passou, enquanto responsável pelo caso. Trabalhando de maneira autônoma e sem fazer parte de uma equipe, nem de profissionais voltados para atendimentos em saúde mental, nem de ats, surpreendi-me em dúvida quanto a possibilidade de resultados mais satisfatórios na situação de Acompanhamento Terapêutico, talvez por não contar com outros profissionais com os quais pudésse revezar esse papel e, assim, se pudesse acompanhar o cliente de maneira mais intensiva, o que possivelmente teria evitado uma intervenção mais “drástica” como o uso de sessões de eletroconvulsoterapia.
Questionamos, então: será que não seria possível se evitar, nesse caso, esse tipo de ação terapêutica, ou mesmo a internação 24 horas, se houvessem outros profissionais at para revezamento no caso? Até que ponto o uso desse procedimento (eletrochoque) é mesmo aplicável? As manifestações mais severas e persistentes do cliente teriam sido sanadas, mesmo que em um prazo mais prolongado, se estivesse sendo acompanhado por uma equipe de ats e uma outra equipe de profissionais da saúde mental que trabalhassem de forma integrada?
Essas são perguntas que nos fazemos e para as quais ainda não temos respostas objetivas, talvez pela experiência ainda em construção na prática como acompanhante terapêutico, ou mesmo por ficarem no plano do questionamento e do nosso próprio sentimento de insuficiência em momentos extremos.
Durante o período da internação, obtínhamos notícias por intermédio de sua esposa, que nos ligava constantemente para falar de como se sentia e também para dar notícias sobre ele. Conversamos com o cliente ao telefone, em um momento já próximo de sua alta, e o percebemos um tanto confuso. Porém ele dizia se lembrar da pessoa da at, ao escutar a voz, que segundo ele, era inconfundível.
Na época da alta hospitalar, nos dirigimos até o hospital, acompanhando a esposa e um funcionário, o mesmo que, no dia do internamento, havia dirigido o carro cedido pela empresa para levá-lo. Ao chegarmos no hospital o clima de ansiedade era intenso por parte de todos, dada a expectativa de como Heitor estaria. Nós o encontramos já de malas arrumadas e percebemos sua popularidade no lugar, sugestivo de uma mudança em seu estado de humor. Ele nos reconheceu e, após conversar reservadamente com sua esposa, chamou-nos para mostrar onde estava alojado. Cumprimentou a todos, contou sobre tudo que havia feito lá. Saímos do hospital após contato com a psicóloga e o médico e sob fortes recomendações acerca dos cuidados necessárias no período de convalescença.
Após o retorno da internação, o cliente optou por permanecer apenas com o médico terapeuta de apoio como seu psiquiatra, que era também o responsável pela parte medicamentosa. Prosseguimos com o trabalho de AT, assim como também foram avaliadas as possibilidades de seu retorno às atividades de trabalho. A essa altura Heitor se apresentava bem diferente do homem que havíamos conhecido: tinha engordado, estava conseguindo dormir a noite toda, comia melhor e permanecia sorridente a maior parte do tempo. Dizia estar pronto para voltar ao trabalho. Por outro lado, encontrava-se ainda sob efeito de uma dosagem elevada de medicamentos.
No trabalho em AT era objetivada os passos de sua recuperação, de forma que se estabelecesse a noção de que tudo iria aos poucos voltar à normalidade, o que possibilitou o reconhecimento de seus limites. Por essa época prosseguíamos com os trabalhos corporais na praça em frente de sua casa.
Acompanhávamos Heitor nas compras do supermercado, no caixa do banco, em caminhadas próxima à sua casa, ou simplesmente permanecíamos dentro de sua casa. Ele demonstrava uma ar de disposição para tudo, o sorriso era constante, embora muitas vezes imotivado.
Após um mês de retorno do internamento, o médico psiquiatra nos procurou, sugerindo uma tentativa de retorno ao trabalho de maneira processual. Assim, mantivemos contato com a empresa, que propiciou seu retorno ao setor de origem, contudo readaptado em uma outra função, como trabalhador do almoxarifado, lidando com peças de seu conhecimento. Ele aceitou o novo cargo. Passou por um período de experiência trabalhando meio turno, ainda em caráter extra-oficial e, depois que recebeu alta da perícia médica do INSS, continuou nesse setor e função em período integral.
Os acompanhamentos continuaram sendo feitos alguns dias no local de trabalho, em que acompanhávamos sua readaptação. Para qualquer iniciativa de mobilização com o funcionário, o setor de recursos humanos da empresa entrava em contato com a at, pedindo orientações.
Dando prosseguimento ao atendimento, o cliente passou por psicoterapia individual com a at, após receber alta dessa prática clínica. Essa mudança de função de at para terapeuta individual de apoio, foi construída em conjunto com o médico psiquiatra, que interviu positivamente nessa proposta de manutenção do quadro de recuperação, após termos observado o cumprimento dos objetivos inicialmente traçados para o trabalho de Acompanhamento Terapêutico.
O médico psiquiatra procede com a diminuição gradativa do medicamento. Por outro lado, o retorno sobre o processo de evolução saúde/doença continua sendo dado pela terapeuta, ao setor de recursos humanos da empresa e ambulatório de saúde do trabalhador. Os contatos com o psiquiatra que o acompanha permaneceram mais esporadicamente, em que eram realizadas trocas de experiências dos profissionais, o que tem favorecido bastante a manutenção do quadro de convalescença do cliente, além de evitar uma possível nova crise.
O trabalho de AT foi encerrado naturalmente, na medida em que atingiu o objetivo de reinserir o cliente em seu cotidiano familiar e profissional.
O trabalho corporal individual em consultório foi iniciado para dar continuidade ao processo de recuperação, permitindo ampliar seu auto-conhecimento corporal, bem como uma possibilidade de investigação mais profunda de sua dinâmica de personalidade, através do conhecimento de sua história pessoal, possibilitado pelo vínculo estabelecido. Temos nos utilizado de diversas estratégias de apoio e auxílio no reconhecimento dos seus limites humanos, no intuito de promover condiç ões para que ele possa identificar alterações em seu corpo que se reflitam em suas atividades e em seu funcionamento pessoal.
O trabalho corporal atua terapeuticamente na direção de uma frase difundida por Wilhelm Reich: “O corpo é o inconsciente visível”, ao lado de outra, mencionada por Stanley Keleman: “O corpo é um rio de acontecimentos”.
Portanto, nesse inconsciente visível que é o corpo pode-se trabalhar, terapeuticamente, o desbloqueio de tensões corporais, a fim de que se possa fazer circular a energia vital existente em todo ser humano.
Comentários finais
Ao apresentarmos esse relato de experiência, por ocasião do I Encontro Nacional de Acompanhantes Terapêuticos, pudemos ouvir e discutir opiniões, sugestões e críticas sobre essa possibilidade de se trabalhar em AT. O acompanhante terapêutico é um profissional que ocupa um lugar singular, não só ao acolher o material psíquico, fruto das experiências individuais do cliente, como também por toda a peculiaridade que reveste este trabalho de escuta da singularidade, em que o terapeuta vai ao encontro da dificuldade pessoal de seu cliente onde ele se apresenta.
Como acompanhantes terapêuticos nos sentimos extremamente estimulados no exercício dessa prática. No estabelecimento de um vínculo, colocamo-nos lado a lado com o sujeito em dificuldades, explorando as várias maneiras de convivência e ultrapassagem de obstáculos que se apresentem. O movimento rompe essas barreiras e possibilita uma saída criativa e viável para os impasses terapêuticos com que nos deparamos em cada caso.
Percebemos também nessa prática um aspecto fundamental e rico, que é o campo de interdisciplinaridade que se apresenta ao se trabalhar como acompanhante terapêutico. Como profissionais da área da saúde, visualizamos o imenso potencial dessa “clínica do espaço” – como vem sendo considerado o trabalho de Acompanhamento Terapêutico.
Vemos como uma prática clínica inovadora no sentido da relação terapeuta/cliente e que traz inúmeras possibilidades de ações em favor do usuário, não só dos serviços de saúde mental, como em outros contextos de tratamento marcados pelo confinamento, pela clausura e pela exclusão. O AT vem restituir o valor do movimento, do trânsito permanente e do fruir da liberdade, como marcas inscritas naquilo que o sujeito manifesta e que pode ser traduzido em sua necessidade de atendimento pelos serviços de saúde.
Trata-se, em suma, de uma motivação para aqueles que buscam saídas e caminhos possíveis na realização de um efetivo trabalho voltado para a pessoa que atravessa situações de dificuldade.
Referências Bibliográficas
CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: A idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA A CASA (Org.) A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991.
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