Aplicação da Análise Bioenergética na Clínica Social
Equipe Libertas
A Sociedade de Análise Bioenergética do Nordeste do Brasil, com sede em Recife, Pernambuco, tem como fundadores e diretores os psicólogos Jayme Panerai Alves, Lucina Araújo, Gedalva Rapela e Grace Wanderley de Barros Correia, que são os mesmos diretores do Libertas Comunidade.
O Libertas, criado há 18 anos, desenvolve atividades nas áreas clínica e organizacional. Há aproximadamente 12 anos, foi aberta a Clínica Social, através dos estágios curriculares, em Gestalterapia, das Faculdades de Psicologia do Recife, sob a supervisão da psicóloga Lucina Araújo.
Quando iniciada a Formação em Análise Bioenergética por parte da equipe Libertas, houve uma maior identificação com esta abordagem, sendo hoje a base principal do seu trabalho. A Sociedade de Análise Bioenergética do Nordeste do Brasil, oficializada em 1997, incluiu atividades da clínica social.
Aplicação da Bioenergética na Clínica Social
O atendimento socializante tem como objetivo possibilitar às camadas mais carentes da sociedade o acesso à psicoterapia nas suas diversas aplicações: criança, adolescente e adulto, na forma individual e grupal.
No momento atual, este serviço, basicamente fundamentado na Análise Bioenergética, amplia-se com um enfoque de prevenção e manutenção da saúde biopsicosocial.
O trabalho estende-se para gestantes, empresas, escolas, com a utilização de exercícios da Bioenergética que ajudam as pessoas a lidarem de modo mais saudável com as exigências do mundo de hoje e a manterem-se groundings , centradas e vivas.
Nos grupos, damos um enfoque de integração e, através da Bioenergética, trabalhamos as competições, lutas de poder e outros fenômenos que ocorrem no processo da convivência, objetivando um funcionamento grupal fluido, coeso e com economia energética.
Hoje, temos, em média, dez psicoterapeutas atendendo de 60 a 80 pessoas.
A divulgação deste serviço é feita através dos clientes, alunos em formação, cursos de psicologia, associação de bairros, empresas, folders e jornais.
Quando iniciamos este programa, a procura era na sua maioria de estudantes, empregadas domésticas, porteiros de prédios e outras pessoas de profissões que ganhavam, aproximadamente, um salário mínimo. Na medida em que a crise econômica, financeira e social do Brasil foi se agravando, o público foi se diferenciando, e pessoas que antes não se incluíam neste programa começaram a buscá-lo, a exemplo de funcionários públicos, bancários, professores e profissionais liberais.
As sessões de psicoterapia acontecem uma vez por semana e as pessoas pagam um valor a ser definido na primeira sessão, de acordo com a situação financeira do momento. O preço de uma sessão fora deste programa é de R$ 80,00. Consideramos que até 50% deste valor está dentro do projeto socializante. Mas, a maioria das pessoas que buscam este serviço pagam R$10,00, R$ 15,00 ou, no máximo, R$ 25,00.
A definição do valor a ser pago constitui a maior dificuldade deste processo, tendo em vista os significados simbólicos do dinheiro, podendo o mesmo ser veículo de resistência e transferência. A real e grande dificuldade financeira mistura-se com a relação de cada um com afetos, poder, privação, auto-estima, prazer, direito de viver, ou apenas sobreviver.
Sabemos que o dinheiro pode significar o valor que a pessoa se dá, ou merece, relacionando-se, portanto, com a auto-estima. O dinheiro confunde-se com afeto, “tenho mais, sou mais querido”. Sabemos de muitos conflitos entre irmãos que brigam após a morte do pai; cada um quer ficar com mais, talvez na ilusão de ser mais amado, ou para se sentir mais perto do pai.
A nossa sociedade mantém o mito do Dinheiro associado ao Poder, à Felicidade, à Sexualidade. É a ilusão de que os ricos são felizes e potentes.
O Dr. Ronald Robbins associa a forma e a capacidade de cada um ganhar dinheiro com o grau de oralidade. Assim, pessoas com uma história de muita privação, provavelmente, repetirão a relação com a mãe, não se permitindo ganhar além da sobrevivência.
A miséria afetiva que foi experienciada na infância perpetua-se na miséria material. Nessas pessoas, observa-se, muitas vezes, pouco investimento no processo. O esforço financeiro requer energia, difícil num sistema sub-carregado, além do desejo de que “façam por mim”. Muitas pessoas vêm com a expectativa de não pagar. Nessas, é freqüente o abandono do processo, sem explicação nem pagamento.
Por todos esses fatores é necessário habilidade e todo cuidado do terapeuta na definição do valor a ser pago pelo cliente. A dificuldade consiste em distinguir o conteúdo subjetivo da realidade concreta. É necessário atenção para que o dinheiro não seja objeto de manipulação. Na experiência, há casos de exploração: pessoas que querem pagar menos do que sua condição financeira permite.
Quando, durante o processo, o terapeuta percebe que o valor estipulado não é o justo, após a análise simbólica, o contrato é revisto.
Avaliamos que como o programa envolve pessoas com maiores dificuldades financeiras, mesmo um valor simbólico exige investimento e motivação para que sejam superadas as resistências. As pessoas que ultrapassam este momento inicial e mergulham no processo, evidenciam mudanças refletindo-se na busca de uma melhora de vida também financeira, através do resgate da auto-estima e do direito de viver mais digna e prazeirosamente.
Provavelmente, buscar este programa traz à tona a condição de privação em que vivem essas pessoas. Socialmente, elas sentem-se inferiores, injustiçadas, marginalizadas, preconceituadas e raivosas. Dependendo da história de cada um, outros sentimentos predominam, como menos valia, fracasso, vergonha, humilhação.
No processo terapêutico, a partir da realidade objetiva, necessário se faz que venha à tona os sentimentos subjacentes e a ligação com a história e dinâmica familiar, para que, na medida que se trabalhe bioenergeticamente, a pessoa possa abrir possibilidades de mudanças no nível da relação com o self, com o mundo e com o existir.
Para muitas dessas pessoas, a melhora terapêutica evidencia-se também na melhora da qualidade de vida e melhora da condição social. Na proporção que os conteúdos inconscientes são elaborados e trabalhados, as pessoas tomam posse do corpo, da sexualidade, dos afetos, canalizando energia na direção de uma vida mais digna. Na nossa experiência, algumas pessoas começaram a buscar trabalhos complementares e/ou descobrir talentos a serem potencializados.
Exemplificando, citaremos uma moça que soube do programa pela comunidade de um bairro pobre do Recife. Ela tinha 26 anos, solteira, virgem, protestante, professora do primeiro grau, trabalhava na secretaria de uma escola, ganhando um salário mínimo. Era uma pessoa bastante introvertida e sem perspectiva de vida. Morava com os pais e sua vida circulava em torno da religião. Iniciou a terapia individual, pagando um preço simbólico e, durante o processo, que se prolongou por 4 anos, rompeu com a forma fechada e opressora da igreja a que pertencia e que, na verdade, não tinha sido uma escolha sua. Aos poucos, foi se abrindo para a vida, apossando-se do seu corpo e sexualidade. Deixou de ser virgem, permitindo-se uma troca afetiva-sexual independente de casamento.
Profissionalmente, começou a buscar cursos que a desenvolvessem e, para ajudar no custeio de seus estudos e terapia, começou a fazer artesanato. Concluiu Pedagogia e participou de um curso de Bioenergética. No momento atual, mora em outra cidade, tendo assumido a direção de uma escola, parecendo viver mais independente e melhor, pessoal e profissionalmente.
Em relação aos terapeutas que atendem no projeto, percebemos que é irrelevante o valor pago pelos clientes socializantes, desde que seja proporcional à condição financeira dos mesmos. É necessário perceber quando o dinheiro é instrumento de manipulação, de exploração ou como uma forma de ser especial. Mas, todos estes aspectos já fazem parte das dificuldades e atuações dos clientes que precisam ser analisados e trabalhados terapeuticamente.
A psicoterapia, dentro de um programa social, exige um acompanhamento constante do processo, nas suas peculiaridades, para que atenda aos objetivos propostos de tornar acessível às pessoas carentes uma abordagem terapêutica capaz de torná-las mais vivas, saudáveis, com o direito de Ser e Existir.
A Bioenergética aplicada a uma comunidade carente
Em Pernambuco, nordeste do Brasil, famílias de agricultores ocuparam um canteiro de obras que um órgão do governo, DNOCS, havia abandonado, depois da construção de uma barragem para evitar as enchentes, frequentemente ocorridas na região.
As mulheres trabalhavam nas atividades domésticas, na agricultura e pescavam num lago onde existia a comporta da barragem, correndo riscos de vida pela precariedade e falta de segurança na mesma.
A comunidade, de aproximadamente duzentas pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças, vivia com todas as dificuldades inerentes à situação social.
Uma Organização Não-Governamental (ONG), desenvolveu um projeto chamado “Projeto Peixe“, objetivando oportunizar às mulheres atividades produtivas e geradoras de renda, que ocasionassem a melhoria da comunidade.
Cerca de 40 mulheres participaram ativamente do projeto que, além da pesca, incluiu outras atividades complementares, como criação de patos, casa de farinha, pocilga e hortas caseiras.
O projeto teve como agência financiadora a Fundação Interamericana (IAF), que forneceu verba para a instalação de toda a infra-estrutura, limpeza do açude, montagem da casa de farinha, aquisição de equipamentos, a saber: veículo, balança, freezers, etc.
O grupo responsável tinha um prazo de dois anos para organizar, orientar e assessorar as mulheres na implantação e desenvolvimento do projeto. Após esse tempo, a expectativa seria de independência da comunidade, ficando a ONG com a responsabilidade de supervisão.
Foi criado um esquema de comercialização de peixe e farinha e, posteriormente, organizada uma creche.
Como o projeto era voltado para as mulheres, era delas a responsabilidade e o gerenciamento do mesmo. Duas mulheres tiraram a carteira de habilitação, e apenas as duas poderiam dirigir a caminhonete. A participação dos homens era apenas de colaboradores.
Na medida que as mulheres se organizavam e trabalhavam produtivamente, mudanças aconteciam e repercutiam nos vários aspectos da vida pessoal, familiar e social. A relação homem-mulher foi diretamente atingida. As mulheres estavam completamente envolvidas e empolgadas com as novas experiências de valorização, conquista de espaço, assunção de poder, desenvolvimento pessoal e consequente melhoria de vida. Os homens ameaçados, perdidos, confusos, excluídos e raivosos.
A proporção em que as mulheres se descobriam, reviam o seu papel na família e na sociedade. Algumas delas começaram a se reconhecer enquanto pessoa que tem corpo, sexualidade, desejos e voz. Os valores eram afetados e o modelo paternalista abalado.
Os homens ficaram perplexos, pois até na cama as mulheres comportavam-se de modo diferente: permitiam-se expressar desejos, preferências, tomar iniciativas, dar limites. Era possível dizer “não” sem desculpas de dor de cabeça.
O relacionamento conjugal, a sexualidade, as pessoas e famílias não eram mais as mesmas.
Toda comunidade estava afetada. O processo era irreversível e os conflitos homem-mulher agravavam-se, fazendo-se necessário uma urgente intervenção, pois eram frequentes as brigas e ameaças.
Alguns homens, quando bebiam, chegavam em casa agressivos, demonstrando toda uma indignação e ódio por se sentirem excluídos e ameaçados com a “nova mulher”. As reuniões eram tensas pelo clima de ameaça. A situação tornava-se grave com riscos de violência ou até assassinato.
Nessa ocasião, as responsáveis pelo projeto procuraram os diretores do Libertas, que prontificaram-se para um trabalho de grupo, visando facilitar a administração dos conflitos, buscando a melhora da relação homem-mulher e maior integração da comunidade.
Foi decidido que seria melhor, num primeiro momento, um trabalho com o grupo de homens.
Cerca de 30 homens participaram de um encontro de 10 horas, com dois psicólogos (um homem e uma mulher).
A reunião tinha como objetivo trabalhar nos homens a insegurança, possibilitando a expressão de todas as fantasias e emoções experienciadas.
No início foram solicitados nomes e objetivos para o encontro. Definiu-se um mini-contrato de sigilo, compromissos, papéis, limites. A proposta foi explicada e, através da Bioenergética, começou-se a trabalhar a respiração, os anéis, o desbloqueio das tensões, propiciando grounding.
Introduziu-se a comunicação entre pares como forma de ir criando vínculos e quebrando as resistências.
O trabalho era intercalado entre o corporal e o espaço livre para o emergente do grupo.
A atenção dos facilitadores era voltada para os sentimentos subjacentes, que eram predominantemente de medo e de raiva. A raiva foi expressa com a ajuda da Bioenergética, com exercícios como o “Quem você pensa que você é?” e outros de competição, luta de poder, limites, que eram vivenciados e trabalhados corporalmente. Desbloqueando-se a mandíbula e estimulando-se a expressão nos olhos, dentes e braços, muita raiva veio à tona e só depois dessa expressão, integrada a pélvis e pernas, é que emergiu o medo da perda, aliado à tristeza e ao sentimento de impotência. Foi ao mesmo tempo doloroso e belo a verdade interior surgir após a expressão da negatividade. Naquele momento de fragilidade dos homens, acontecia a verdadeira união e casamento do masculino e feminino, revelados no compartilhar da dor, nas lágrimas, no afeto, no amor. Era um momento mágico de paz, de encontro existencial; a troca de papéis, a transcendência dos sexos, a complementariedade, a esperança, o silêncio, a Unidade.
No instante seguinte, eles começaram a conversar e perceber os aspectos positivos do projeto: a educação para os filhos, o complemento orçamentário, o desenvolvimento da comunidade e a melhoria da vida familiar e social. Abria-se, neste momento, a possibilidade de uma aproximação, e os homens começaram a enxergar a importância de ocupar alguns espaços no projeto como colaboradores. Foi desenvolvido o compromisso de participação, nas reuniões da comunidade, e que homens e mulheres, juntos, deveriam se unir na direção da melhoria de todos.
O trabalho foi encerrado com os facilitadores do Libertas colocando-se disponíveis para um outro momento, caso houvesse necessidade.
Avaliamos como difícil, mas muito enriquecedora, a experiência, que, na nossa percepção, extrapolou os objetivos propostos, permitindo uma vivência arquetípica e transcendente.
Foi uma dádiva para todos que viveram aquele instante, onde as diferenças de sexo, geração e classe social, perderam o significado diante da beleza maior do brilho dos olhos, refletindo a alegria e a esperança no encontro dos Homens.
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Passados 5 anos, procuramos saber, e fomos informados, que com o afastamento da ONG, aos poucos, o projeto foi se descaracterizando.
A caminhonete começou a ser dirigida pelo marido de uma das motoristas para uso pessoal. Também uma das líderes (era considerada a bruxa da comunidade) começou a usar a produção da casa de farinha em benefício próprio.
Os responsáveis pelo projeto interviu, tomou o carro e alguns equipamentos.
A avaliação de uma das condutoras do projeto é que, provavelmente, a comunidade não estava preparada para a independência e que deveria ter havido mais trabalhos pessoais e de grupo. Mesmo assim, a experiência valeu, refere ela, porque todos vivenciaram um processo educativo, onde melhoraram a auto-estima, aprenderam, se desenvolveram e, hoje, certamente, não são mais os mesmos.
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Finalizando, queremos ressaltar a grande contribuição da Análise Bioenergética, como psicoterapia e como prática mantenedora da saúde, aplicável nos diversos setores e camadas da sociedade.
Queremos expressar a nossa gratidão, admiração e afeto ao Dr. Alexander Lowen por possibilitar, através da Bioenergética, a travessia do caminho ao encontro de si, pelo resgate do corpo, da natureza e da vida.
Grace Wanderley de Barros Correia
* Lucina Araújo
* Gedalva Rapela
* Jayme Panerai Alves
* colaboradores e revisores