O Corpo do Terapeuta na Prática Clínica: uma reflexão sobre sua sexualidade, gozo e depressão
Minha reflexão tem se voltado para o corpo do terapeuta. Olho meus colegas em volta, a maioria atualmente tem 50 anos ou mais. Muitos adoecem.
Pensando na vida dos grandes desbravadores da psique humana, observo os corpos de Freud e Reich e me pergunto que destinos são esses. Penso no lugar do terapeuta, o lugar da solidão do pensamento, da atenção constante, da doação total na relação com o outro: «Estou neste momento para você».
O corpo do terapeuta muitas vezes cindido dentro do seu próprio lugar, a cadeira em que se deixa cair, o corpo pesado e sem conexão com a sua própria respiração, às vezes deprimido e angustiado, cheio de tensões tão conhecidas.
Corpo cheio de um desejo que necessita, por ética, ser exorcizado, como diz o padre em Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman: «Recolha-se, Desejo. Necessito te punir cada vez que apareceres».
Corpo a corpo do encontro – a energética do desejo, o contato interpessoal. A fala não é necessária, pois o corpo revela o desejo.
Como fazer para soltar as tensões frente ao cliente, que exige e demanda cuidados além do que meu corpo pode compreender ou dar naquele dia, naquela sessão?
Território da semente da amargura, do suicídio. Corpo debulhado, como as contas de um rosário.
Corpo onipotente, que cura. Que exorcisa as doenças da alma. Ser idealizado. Corpo de esperança, com a responsabilidade de estar com um outro que, de um lado, o idealiza e, de outro, lhe apresenta constantemente o demônio da resistência.
Este corpo do terapeuta é o mediador organizado entre o sujeito e o mundo: um corpo teatro, cenário construído pelas projeções do paciente, mas, para além das projeções do paciente, há um outro cenário construído, ocupado por outros personagens, criações próprias do terapeuta, terreno fértil para dissociações.
A terapia é centrada na contratransferência porque todo toque, intervenção ou interpretação no corpo do cliente é flitrado pelo ego do terapeuta, que muitas vezes dá o tom da sessão.
Nesse contexto, houve uma transformação na postura do terapeuta: não é mais o homem barbado que dormita escondido atrás do divã, como ridicularizaram tantas caricaturas, mas é aquele que se faz presente no corpo a corpo, no olho no olho, tornando-se mais exposto, mais humanizado, menos endeusado, menos idealizado.
Ainda assim, o terapeuta continua sendo o depositário das tristezas, dores, alegrias, ódio e amores do cliente, o que significa ocupar um lugar de poder. Este «trono» fortalece , componentes narcísicos desconectados, que às vezes se entranham de tal modo no terapeuta que ele parece não conseguir sair deste trono sem fragmentar-se.
Há, portanto, inerente ao lugar do terapeuta, o embate entre o narcisismo do lugar que ocupa na vida do cliente e a destituição deste lugar. Este embate resulta muitas vezes numa fobia da vida fora do consultório, muito pobre de relações afetivas, sociais, que faz dos clientes seus amigos – e do consultório, seu mundo. Alguns permanecem na clínica por mera questão de sobrevivência financeira, atuam automáticamente no papel, se perdem em loucuras vinculares, entram em jogos de poder e competição nas relações, repetindo com os colegas relações muito regredidas. Outros assumem atividades diferentes, que restringem, diminuem ou extingüem sua clínica.
Às vezes somos autênticos, às vezes uma fraude.
Como o Lobo da Estepe de Hermann Hesse, o ser terapeuta tem 1000 almas aprisionadas. Inesperadamente, uma delas eclode no cenário no momento mais inadequado. Então aparece o lobo – a depressão, a destrutividade que não se pode conter – e devora uma alma.
Ainda assim dentro de cada um de nós há um terapeuta interno que, ao ser acionado, nos integra, nos dá compaixão, humildade, vulnerabilidade, nos faz aceitar nossos erros, nos dá noção dos nossos próprios limites. O estar na clínica mobiliza instrumentos que só o terapeuta pode regular. Ele precisa de terapia, supervisão, amigos, férias. E precisa recorrer ao humor, ao amor, à poesia.
Ao embate do trabalho psicoterápico se contrapõe a imagem poética de Boadella sobre o encontro terapeutico: uma dança da relação, em que a ressonância, o toque, o ritmo, a vibração, a cadência, a pulsação dos seres se mobilizam para estar aqui e agora, consigo mesmo e com o outro.
Neste momento, o terapeuta testemunha e partilha da afirmação existencial daquele que não é mais seu cliente, mas seu companheiro de caminho. Assim, também o terapeuta liberta, dá asas a uma de suas 1000 almas aprisionadas – e vive o fugaz instante de plenitude que dá sentido à vida.