“Cada sociedade tem seu corpo assim como sua língua”
Michel de Certeau – Histories du corps
Ana Lúcia Faria
É importante iniciar dizendo que o corpo traz em si a memória da sua cultura, de sua época e está constantemente sendo (re) fabricado.
Denise Sant’Anna diz que “o corpo é o lugar da biologia, das expressões psicológicas, dos receios e fantasmas culturais; o corpo é uma palavra polissêmica, tem vários sentidos, é uma realidade multifacetada e, sobretudo, é um objeto histórico”.
Não podemos também deixar de falar da importância dos estudos de M. Foucault com relação ao desenvolvimento de pesquisas sobre o corpo na vida privada, e também sobre a ampliação do estudo do corpo no âmbito histórico. Foucault analisa também o poder em sua positividade como relação constituinte de determinadas ações e formas de expressão corporal, e não apenas como algo que reprime e cega. Ele mostra inclusive que nossos gestos e os cuidados corporais criados pela medicina ou pela moda são datados historicamente.
Assim, nossos sentimentos, desejos, preferências, aparência e o fato de nos sentirmos sujeito do próprio corpo, não poderão mais ser considerados “entidades naturais”, pois são produzidos nas relações que emergem como constituintes do corpo. O essencial de seu trabalho é tornar problemático e, portanto histórico, tudo aquilo que a priori tendemos a considerar “objeto natural”. Para Foucault, a pesquisa histórica não implica em buscar o “corpo”, mas sim as práticas e as experiências que visam fortalecê-lo ou enfraquecê-lo nas mais diversas circunstâncias, tais como, no lazer, no trabalho, na vida pública, nas instituições privadas, etc.
Quando assumimos que somos nós que falamos do corpo, que esta fala depende do nosso ponto de vista particular abrimos mão da certeza e da ilusão de se ter um único ponto de vista e deixamos de exigir privilégios especiais para nosso modo de entender o corpo, a corporalidade.
Para falar da Análise Bioenergética na América Latina é necessário lembrar como ela se iniciou nos EUA; a realidade que cada um desses países vivia quando esta abordagem se inseriu em suas sociedades, e sua trajetória até o momento atual.
A Análise Bioenergética é uma abordagem psicoterapêutica desenvolvida por Alexander Lowen (que nasceu em1919 e morreu em 2008) com base nas ideias de Wilhelm Reich (que viveu entre 1897 a 1954), que concebe o ser humano a partir da noção da inseparabilidade corpo-mente e do fluxo energético. É uma abordagem que tem como eixo principal a unidade funcional entre os processos corporais e verbais. Trabalha conjuntamente com a realidade dos processos psíquicos, das relações interpessoais e dos processos físicos.
Para nós, psicoterapeutas bioenergéticos, não existe hierarquia entre mente e corpo, pois ambos exprimem, cada um a seu modo, a força da vida. Isto faz parte do nosso referencial teórico e de nossa aposta de trabalho.
Alexander Lowen foi aluno e paciente de Wilhelm Reich durante o período de 1942 a 1952.
De 1947 a 1952 Lowen foi para a Suíça estudar medicina. Quando retorna aos EUA não reencontra Reich e inicia então, junto com John Pierrakos, um trabalho sobre o seu próprio corpo.
Lowen e John Pierrakos fundam em 1956 o Instituto de Análise Bioenergética e à medida que o Instituto foi se expandindo para outros países passou a chamar-se Instituto Internacional de Análise Bioenergética.
Lowen traz como contribuição à teoria reichiana a continuação e o aprofundamento do estudo dos tipos caracterológicos, além do trabalho com a couraça caracterologica a partir da leitura corporal conectada à compreensão e análise da história do indivíduo.
Também desenvolveu várias técnicas de trabalho corporal a partir da sua própria vivência.
Ampliou a questão da concepção reichiana com relação ao aspecto sexual, pois não acreditava que somente o resgate do reflexo do orgasmo fosse à chave de todos e para todos os problemas e que somente por meio do trabalho consistente com todas as questões do sujeito se poderia falar em saúde emocional. Mas ignorar o papel da sexualidade na determinação da personalidade do individuo é desprezar uma das mais importantes forças da natureza, sendo que esta só pode ser compreendida a partir da estrutura da personalidade e das condições sociais.
Portanto, para possibilitar que as pessoas reescrevam e reinventem a sua própria história, o processo psicoterapêutico deve trabalhar com as tensões, com o corpo, com a análise das defesas psíquicas, com a evocação dos sentimentos reprimidos e com a análise do entorno do indivíduo.
A análise bioenergética chega ao Brasil
A teoria de Wilhelm Reich chegou ao Brasil no final da década de 50 e seu mais importante transmissor/disseminador foi o Dr. José Angelo Gaiarsa – que foi quem ergueu a bandeira da valorização do corpo, da liberdade sexual, da expressão, da vida!
O movimento corporal desde então foi intenso, efervescente e vivido/vivenciado com muita paixão. Houve adesão de várias pessoas e correntes. No entanto, ao mesmo tempo em que este grupo buscava a expressão da vida vivíamos uma ditadura militar desde 31 de março de 1964. Esta época é marcada por medo, centenas de cassações, prisões em massa, torturas e mortes de opositores.
Em 1968 fecha-se o Congresso Nacional com o AI-5 o qual só seria revogado em 1978. Este período foi considerado “os anos de chumbo” da didatura militar e tinha como objetivo a repressão da expressão da vida.
Apesar de toda a repressão que acontecia no país, havia também uma efervescência humana na área cultural, principalmente no campo musical. Saímos da Bossa Nova para a MPB e as músicas de protesto até chegar ao movimento tropicalista.
Segundo Cecília Coimbra, o tropicalismo irrompe em cena, dessacralizando tanto as canções de protesto como o “iê-iê-iê” da jovem guarda e, com seu conteúdo ao mesmo tempo alegre e agressivo descobre o poder dos impulsos festivos e eróticos.
É a partir da década de 70, dentro deste contexto e movimento, que a A.B. consolidou-se em solo brasileiro com Myrian de Campos e outras pessoas.A primeira organização formal no Brasil foi a Sociedade Brasileira de Análise Bioenergética – SOBAB/SP, (1981) composta por Myrian de Campos, Eliana Izola, Eulina Ribeiro,Maria Conceição Bahia Valadares e Odila Weigand que desde então oferece programas de treinamento, curso multiprofissionais, clínica para atendimento à comunidade, classes de exercícios bioenergéticos e intervenções institucionais, seguida da fundação de outras sociedades no Brasil e na Argentina.
Em 1996, as sociedades se organizaram e criaram a Federação Latino Americana de Análise Bioenergética (FLAAB). Atualmente na América Latina somos 5 sociedades, no Brasil 4 Sociedade Brasileira de Análise Bioenergética do Rio de Janeiro (SABERJ/RJ), VIBRARE/CENTRO OESTE, Sociedade Brasileira de Análise Bioenergética (SOBAB/SP), LIBERTAS RECIFE E BAHIA e uma na Argentina Instituto Argentino de Análise Bioenergética (IAAB). Desde 2010 iniciamos com entusiasmo um intercambio com o Uruguai e com o Peru.
Reconhecemos que no início a Análise Bioenergética no Brasil ocupou um espaço intimista. Ficamos encapsulados no corpo de uma forma fragmentada e encastelados na clínica privada, perdendo de vista a relação do corpo com o contexto sócio político.
Estamos, há alguns anos, questionando esta postura, resgatando os princípios reichianos, integrando corpo com o plano social e nos comprometendo com as questões alarmantes da contemporaneidade. Atualmente nossas intervenções vão ao encontro da população, num movimento consciente de levar a Análise Bioenergética para além do consultório.
Temos como objetivo potencializar o desenvolvimento pessoal e profissional do sujeito humano integrado à consciência social, ambiental e à cidadania.
Quando expandimos nossos limites estamos dizendo SIM à VIDA, pois VIDA é movimento, animação, é paixão por alguém, por uma ideia, por um projeto, pela própria vida.
Enquanto profissionais psi temos como tarefa diminuir o sofrimento humano e ampliar a fruição da vida. Temos que nos colocar no sentido de provocar e ser provocados, isto é, no sentido de produzir, de gerar, de promover, de facilitar, de atrair, de causar desejo.
Sabemos que manter e repetir sempre o mesmo padrão de comportamento é ficarmos presos na mesma velha realidade e que para romper estes padrões temos que ter coragem e ousar sair de nossas zonas de conforto.
Sabemos também que as teorias não são espelhadas na realidade, muito ao contrário, são ferramentas para poder intervir no sentido de manter a vida circulando, para questionar e transformar nosso cotidiano, os preconceitos, desconstruir verdades e produzir e aceitar outras formas de existir e ampliar nossa capacidade de incorporar a diferença.
Só vivendo desta forma é que poderemos sair da armadilha do medo, e assim de recuperar nossa voz e a nossa expressão.
Neste processo a FLAAB amplia sua área de atuação, filia-se à ULAPSI e ao FENPB, compartilhando com estas instituições o compromisso de fazer com que nossas ações transformem e melhorem a vida de nossos povos.
Como bem nos aponta David le Breton “Pensar o corpo é outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social; uma perturbação introduzida na configuração do corpo é uma perturbação introduzida na coerência do mundo”.
Bibliografia